O Clã do Comboio - Ao Engano

Ao Engano


Cheguei cedo a um comboio tardio. E quando ela entrou, eu já lá estava há um bocado. Tinha mais de setenta anos, um aspeto frágil, mas saudável. Saia abaixo do joelho como manda o decoro, blusa e casaquinho de malha por cima. O cabelo era uma neve penteada. Trazia consigo uma mala com rodas, enorme e de um peso brutal. Tiveram de ajudá-la a pôr aquele exagerado volume dentro da carruagem. Quando se sentou paralela a mim, do outro lado do corredor, ofereci-me para lhe colocar a mala no suporte junto ao teto: 

- O senhor não pode. 
- Posso, posso.
- E depois quem é que a tira?
- Para onde vai?
- Santarém.
- Tiro-lha eu que só saio em Riachos.
- Muito obrigada. É um anjo.
- Não sou nada. Os anjos têm aureola.
- Isso não lhe falta a si.

Gargalhada geral. Suei para subir a mala, mas lá acabei por conseguir. 

- Fui a Paris, visitar uma irmã.
- Muito bem.

E mergulhei na escrita enquanto ela colocava um enorme saco de mão no banco ao seu lado. E a coisa foi calma até ao Oriente. Acontece que a carruagem encheu e o lugar onde ela levava o saco foi preciso. Para ele. 

Eu não sabia que ainda se podia ser marialva junto aos noventa anos, mas, pelos vistos, pode. A menos que se vá ao engano. Como foi o caso. Ele entrou. Aproximou-se do lugar onde estava o saco. Nem lhe pediu para o tirar, limitou-se a empurrá-lo e sentou-se no que sobrava do banco:

- Não se preocupe, deixe lá estar o saco, eu sou bom de arrumar. Estou assim magrinho porque já fiz vinte anos. 

E riu-se. Era um sénior com bem mais de oitenta. Completamente calvo, olho muito azul e ligeiramente curvado para a frente. Calças de bombazina, camisa e casaco com cotoveleiras. Trazia um boné que tirou assim que entrou no comboio. Ela respondeu-lhe:

- Fez vinte anos? Então muitos parabéns!
- Muito obrigado. É a primeira vez que ando de comboio. 
- Ah sim? 
- Sim, tirando hoje, foi mais de setenta anos montado neles... deixe lá estar o saco, não me estorva.

E atirou-lhe uns olhares de irresistível malandro a que ela foi correspondendo com sorrisos que, segundo percebi, não eram de malandrice, embora pudessem ser de gozo com ele. Estranhei, mas esperei. E fiz bem. Tudo viria a esclarecer-se. Ele voltou à carga:

- Então e donde é a bela donzela? Com licença do atrevimento.
- Está licenciado. Sou de Santarém. 
- Boa terra. Por acaso é uma boa terra. Dá de comer a quem passa, mas se não levar dinheiro na carteira, nem água bebe.
- Bebe, bebe! 
- Não bebe nada. Santarém é uma boa terra, mas não tem uma única fonte. É que a gente procura e não há uma única fonte. E a gente vai pedir. E dão-nos. Mas cobram!
- Se o senhor for pedir um copo de água lá onde eu moro, dão-lho pela caridade. 
- Ah sim? E onde é isso?
- É mesmo no centro da cidade...
- É lá que estão as moças mais bonitas!
- Devem estar, mas de moças percebo pouco. 

E com esta se ficou. E ele deve ter desistido porque um homem, mesmo aos noventa, sabe quando não é desejado e, vai daí, calou-se. Ele saiu em Pontével. Fez um aceno de cortesia e despediu-se com um Boa tarde muito educado. Depois de uma série de invetivas, umas mais discretas que outras, depois de certo pavonear da sua existência, porque infrutífero, aceitou a estocada final e foi cavalheiro na despedida. Ela olhou para mim, sorriu, encolheu os ombros como que diz, Este não sabe da missa a metade, e calou-se. Não me deu uma única pista, embora tivesse percebido que eu e o resto da carruagem íamos atentos ao enamoramento. Quando chegámos a Santarém, agarrei na brutalidade que era aquela mala e levei-lha até à rua. Ajudei-a a sair da carruagem e só então lhe vi um sorriso malandro. Reveladoramente malandro:

- Muito obrigada. O senhor é muito simpático. Ainda há gente boa no nosso país. 
- Não tem de quê. Um bom regresso. 
- Muito obrigada. E olhe, se algum dia passar por Santarém e for com sede, vá ao lar das Carmelitas e pergunte pela Irmã Maria Rita. Terei muito prazer em oferecer-lhe um copo de água.

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