Carícia Certa e Valerosa



Carícia Certa e Valerosa


É precisamente
Por ser o dia da criança
Que recordo emocionado
Essa breve e suave dança
Das brincadeiras
E das obrigações.
Era a liberdade.
A maior de todas.
A da inconsciência.
Eu era livre
Sem estudo nem ciência.
Sem lógica nem tratado.
E não dava explicações.
E as que dava, 
Estavam claramente 
Estabelecidas.
Entre brincadeiras e corridas
Chegava ao ninho para lanchar,
À escola para estudar e...
Brincar!
E isso não era crime.
Era natural
E aceitável
Que uma criança 
Brincasse,
E dormisse,
E estudasse,
E obedecesse,
E risse
E corresse.
Eu era livre
Sem estudo nem ciência.
E tinham comigo
A paciência
Dos joelhos esfolados,
Dos calções rasgados,
Da face ruborizada
Escorrendo suor,
E a vida
Era a coisa maior.
Eu era livre 
Sem estudo nem ciência.
E tinha em mim a urgência
De conquistar o Universo,
Galgar planícies e montanhas,
Voar os céus,
Arrebatar donzelas com véus
E lantejoulas,
Cruzar campos floridos
De papoulas,
Erguer uma espada,
Romper a alvorada
Em meu cavalo alazão,
Imaginário
E invencível.


Esse, fui eu
Até trinta e um de maio.
E depois morri.
E em um de junho
Renasci.
E era já outro.
O homenzinho.
O rapazinho.
O rapaz.
O moçoilo.
O homem.
O homem.
O homem.
O menos livre
De todos quantos fui.
Aquele que sabe que não se vive,
Apenas o tempo flui.
E as regras.
E as razões.
E os protocolos.
E as convenções.
E as assinaturas.
E as notícias suaves
E as mais duras,
Mesmo as graves.
E a palavra que se deu.
E a recebida.
E a palavra que se recebeu.
E a perdida.
E os valores.
E as escalas de valores.
E essa incontornável
E singular verdade
Que, afinal, 
Tinha plural.
E os princípios
Assassinados pelos fins.
Os homens sérios
E os que dobram.
E os que cobram.
E os afins.
E os desonestos.
E os lentos.
E os lestos.
E os que conheci.
E os que não quis conhecer.


Depois de ter sido 
Criança,
A única carícia certa
E valerosa
É saber
Que vou morrer.
jpv

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