Crónicas de Maledicência – Onde a Crise Mais Dói



Crónicas de Maledicência – Onde a Crise Mais Dói

Não vou analisar a crise. Isso faz quem sabe. Não vou procurar culpados. Isso fazemos todos. Em casa, na rua, no café… Não vou apresentar soluções. Isso fazem os presunçosos que, normalmente, ironia das ironias, não estão em condições de as implementar. Vou somente fazer um brevíssimo relato daquilo que considero um eco da crise, onde ela mais dói.

Era uma professora como tantas outras. Chamemos-lhe A. Era uma aluna como tantas outras. Chamemos-lhe I. Findando o ano, o décimo segundo, a setôra dava uns conselhos aos homenzinhos e às mulherzinhas em que pegara há três anos, ainda meninos e meninas, e soltava agora para outras aventuras, outras vidas. E a emoção percorria-lhe as palavras, os gestos, o olhar e o sorriso. E eles perceberam a importância do momento, beberam-lhe as palavras e dispersaram calmamente. Alguns ficaram ainda trocando umas ideias com a setôra, entre eles, a I. A setôra olhou-a e disse:
         - Vai correr tudo bem. Tu és inteligente. Já sabes, tem muito cuidado com o Português. A qualidade da nossa escrita cria uma primeira impressão difícil de apagar. Às vezes não basta saber as coisas, é preciso saber transmiti-las. Ideias claras, raciocínios lógicos e... correção.
         - Deixe lá setôra, não vou precisar.
         - Então?
         - Isto está muito mau e eu tenho de ir trabalhar.

A. sentiu-se chocada. Não era uma família desestruturada, pelo contrário, gente de princípios e trabalho. Não era uma aluna fraca. A média dela devia rondar o 16. Foi verificar. Afinal, 16 era a sua nota mais baixa. A média tinha de ser superior.

Eu percebo os cortes nos vencimentos, percebo as subidas de impostos, percebo o aumento dos preços dos bens de consumo, percebo que devemos e temos de pagar. Mas em que mundo vivemos nós? Que realidade é esta que estamos a criar? É mesmo preciso aniquilar a liberdade de aprender? É mesmo preciso destruir percursos escolares em que a nota mais baixa é 16 para que as I. deste país possam ajudar no orçamento lá de casa? É mesmo preciso hipotecar o futuro dos nossos jovens que é o mesmo que hipotecar o futuro de Portugal? E para quê? Para que a Banca ganhe mais? Para que os gestores vivam ainda mais faustosamente? Para que o FMI cobre juros ainda mais elevados e nos empreste dinheiro para pagarmos esses juros e depois cobre juros sobre esse empréstimo?

É aqui que a crise mais dói! É aqui, nestes momentos e com estes casos, que importa questionarmo-nos se estamos a trilhar o caminho certo. É por causa da I. que temos de perceber onde errámos, onde estamos a errar e aprender com isso. É importante que se não repita! Nós podemos cortar nas férias, nas televisões, nos carros, nos telemóveis, até no pão. Mas não podemos cortar no alimento para o espírito. Um país que trata assim os seus jovens, pode ainda não ter reparado, mas está moribundo. Está amputado e quando precisar de andar, não vai conseguir. Mas, afinal de contas, para que é que interessa tudo isto? De que vale a revolta da A. ou a minha? Amanhã há bola!

Tenho dito!
jpv

NetWorkedBlogs