O Clã do Comboio - Riso Matinal


Riso Matinal

Entraram no comboio a conversar. Não prestei atenção, mas julgo que falavam de trabalho. A colega tinha um ar simpático e doce. Olhos de amêndoa a destacaram-se da blusa branca e das calças de ganga. Mas foi ela que me chamou a atenção. Há muito tempo que não via uma pessoa tão confortável consigo mesma. Não havia lugares sentados e por isso seguiram de pé até ao Oriente. Olhei-as de relance. Colhi alguns pormenores, não fosse precisar deles para escrevê-las. Ainda bem que o fiz. Viria a desenhá-las nestas linhas.

Ela trazia uma sandálias de cabedal, pretas. Umas calças muito justas, acetinadas, também pretas, por baixo de um vestido a dar-lhe um pouco abaixo do joelho, ainda preto, com uma renda nas costas, junto à nuca. É engraçado o facto de estar vestida num tom tão soturno e, contudo, ter constituído uma aragem de leveza e boa disposição pelo comboio dentro como quem o desinfeta do cinzento matinal e sonolento que todos os dias se arrasta no Regional das 7:47. Tinha duas estrelas tatuadas atrás da orelha onde figuravam brincos artesanais e uma terceira estrela, um pouco maior, num cotovelo. O do mesmo braço cujo pulso tinha um nome masculino tatuado na sua singeleza feminina.  Era, sem margem para dúvida nem necessidade de segundo olhar, uma presença alternativa em termos de opções estéticas.

O mais interessante, contudo, aconteceu ao longo da conversa que estava a ter com a colega do olhar doce. Explodiam na carruagem gargalhadas cristalinas a cortar o silêncio e a encher o espaço de uma sonoridade descomplexada e divertida. Era um riso com uma musicalidade alegre, a despertar-nos a todos para a manhã e a libertar-nos das crises e dos ronaldos e das barras da noite anterior. Para algumas pessoas, reparei pelos olhares, aquela risada a cortar a monotonia cinzenta da carruagem era excessiva e incómoda. Para mim não. Era genuína. Era mais do que momentânea. Percebia-se que fazia parte do seu caráter. Eu gosto destas pessoas que destoam, que nos desinquietam a alma e nos acordam o espírito. Gostei sobretudo da harmonia entre elas. A explosão e a serenidade. O vigor e a doçura. Não faz mal nenhum fazer uma viagem comum e igual às outras todas. Mas sabe muito melhor quando se encontra uma alma livre e confortável consigo mesma, ajustada e adaptada à sua existência e à sua personalidade, resolvida e capaz de rir à gargalhada perante a monotonia previsível da vida.

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