Primavera
É um dado da cultura popular, o facto da Primavera ser a
estação onde tudo explode em som e cor e onde se realiza, de preferência, o
amor. Não contrariemos o povo que tem sábios e empíricos conhecimentos a que já
vimos a ciência curvar-se por mais do que uma vez.
Era, pois, primavera. E essa manhã, a mesma que já aqui
referimos, viria a aquecer e viria a ser uma manhã de beijos e transgressões.
Comecemos pelas transgressões. Não sei se a MJ já alguma
vez tinha feito gazeta que era o nome que dávamos quando um aluno faltava
deliberadamente a uma aula. Eu nunca tinha feito gazeta. Para mim, as aulas
eram sagradas. Afinal de contas, eu ia à escola para assistir às aulas! A
própria palavra gazeta tinha, entre alunos e professores, uma conotação
justamente pejorativa. Justamente, mas não sempre. Posso dizer com algum
orgulho e alguma emoção que a MJ foi a primeira mulher por quem fiz gazeta. E
essa manhã de primavera foi o primeiro dia em que tal aconteceu. Talvez tenha sido,
também, o meu primeiro pecado de amor. Delicioso pecado, doce transgressão.
Estava calor. Debaixo da enorme ameixieira de jardim
corria uma brisa suave. Ela estava de branco. Fomos buscar dois blocos de
cimento, desses da construção, que estavam por ali e sentámo-nos neles. Fizemos
riscos no chão, mergulhámos no olhar um do outro e conversámos. Descobrimos, de
imediato, o gosto pela conversa, pelas ideias, pela leitura e, imagine-se, pela
escrita. Ambos adorávamos escrever e adivinhávamos no outro um leitor
especialmente interessado. E assim foi. Escrevíamos e líamos um para o outro. E
depois conversávamos sobre o que escrevêramos. Quase a terminar o tempo da
gazeta, as nossas vozes ficaram mais serenas, tombámos lentamente um para o
outro e trocámos o primeiro beijo. Terno, suave, pouco invasivo. E depois um
outro mais caloroso e depois um outro ávido e enérgico e depois, ao longo dessa
primavera, demos milhares desses beijos voluptuosos. Longos e demorados, curtos
e rápidos. De saudação, de despedida, acompanhados por mãos atrevidas ou
entregues à suavidade de dois lábios numa testa. E apaixonámo-nos com a mesma
naturalidade com que demos o primeiro beijo, partilhámos a primeira Bolacha
Maria.
Esperávamos um pelo outro antes de chegar à escola, nos
intervalos, na hora da saída e íamos juntos até ao último metro, à última
passada possível antes do caminho nos separar. E marcávamos tudo com carinho,
com beijos, com festas, com mãos dadas nas mãos. E fomos ficando companheiros e
cúmplices e aprendemos a apoiar-nos um ao outro. Uma vez fui fazer um teste.
Era importante para mim e ela sabia. Enquanto o fazia, ela escreveu-me palavras
de encorajamento numa folha a que juntou uma flor. Guardou tudo num sobrescrito
e deu-me à saída. Não sei a relação. Não sei se há relação. Sei que passei no
teste. Éramos companheiros. Partilhávamos alegrias e tristezas e ajudávamo-nos
mutuamente a conhecer os nossos próprios limites. E beijávamo-nos, meu Deus,
como nos beijávamos! E ficávamos minutos intermináveis a olhar um para o outro.
Ainda hoje me lembro de pormenores da sua face. A cor dos olhos, as diferentes
expressões que fazia, o desenho da sombra e o risco do lápis ou a forma como
colocava o rímel, o desenho dos lábios, as ondas do cabelo… e por aqui me fico
que havia mais corpo do queixo para baixo mas desse falarei mais adiante e em
registo parcimonioso.
A primavera tem outras virtudes. Permite atividades ao ar
livre. Não tem os inibidores do inverno nem os desencorajadores do verão. E
descobrimos então que gostávamos de fazer algo mais em comum: andar. Pode
parecer esquisito para miúdos da escola que têm a oportunidade de passar o
tempo todo a beijar-se e a agarrar-se, mas era a mais absoluta verdade.
Visitámos todos os jardins, parques e quintas da cidade e arredores. Íamos sem
destino, só caminhando lado a lado, admirando a paisagem, os pássaros, as
flores e os odores. Ela gostava de explicar-me coisas da Natureza e eu de parar
e rabiscar um poema para lho oferecer ou beijá-la terna e avidamente. E
caminhámos, caminhámos, subimos montes e cabeços e, uma vez lá em cima,
olhávamos para baixo, contemplávamos a paisagem e descíamos tudo outra vez.
Alguns dos pormenores dessas aventuras continuam a revisitar-me a consciência e
o coração. Numa dessas saídas caminhantes, chegámos a um monte onde estava um
depósito de água com uma escada de ferro muito estreita. Ela estava de saias e
já ia a meio da escada quando se apercebeu que eu lhe oferecera a primazia de
subir na frente no meu próprio interesse de espreitar-lhe as pernas e o mais
que Deus me oferecesse à vista. Lembro-me de a ver, de repente, deitar uma mão
à saia cingindo-a ao corpo e dizer fingindo-se surpreendida:
- Ah seu
malandreco!
Uma vez lá em cima, contemplámos a paisagem sentados no
depósito com as pernas penduradas balançando e batendo com os calcanhares na
parede e, por fim, caímos nos braços um do outro, nosso lugar preferido de
estar por esses dias. O que apreciávamos era, sobretudo, a companhia um do
outro. Isso era o essencial. E fizemos juras de amor. Deliciosas juras de amor.
Sempre sem decidir nada que não fosse aquilo que queríamos no momento. E
crescemos na intimidade e nessa intimidade houve sexualidade, sim. Mas sexo
não. Beijámo-nos das maneiras todas que conseguimos inventar. As mãos dela descobriram
o meu corpo mesmo onde eu pensava que não havia nada para descobrir e eu
encontrei-lhe as formas todas do corpo de menina-mulher sensual e atraente.
Percorri-lhe as curvas, os montes e as planícies em aventuras de desvendar
segredos da intimidade. Um dia, num jardim, enquanto nos encontrávamos
afanosamente, aproximaram-se uns turistas franceses que, ao depararem connosco,
disseram como se fizéssemos parte dos monumentos a visitar:
- Et voilá, les amoureux!
Rimos em gargalhadas sonoras. Depois fizemos um ar sério e
compenetrado. Por baixo da blusa, procurei-lhe os seios que acariciei olhando-a
sempre nos olhos e, por fim, abri-lhe um botão mais e beijei-os como se
acariciasse um tesouro:
- És um
atrevido. Já chega. Pode vir alguém.
E saiu correndo e rindo e abotoando o botão solto e
deixou-me com o calor no tato e o sabor perfumado nos lábios. Aí ficou, o
sabor. Para sempre. Às vezes, ainda tenho a sensação que acabei de lhos beijar
de novo!
E, em meio de toda esta sensualidade e de toda esta sexualidade
que nos trazia ébrios de comunhão, de paixão e de excitação, nunca, sem nunca
sabermos porquê, tivemos o impulso de nos deitarmos para fazer sexo como fazem
os adultos. Talvez estivesse para além dos nossos limites e da nossa
espontaneidade, talvez não o considerássemos porque tudo entre nós era perfeito
como estava e não precisava do sexo para ficar melhor, talvez o nosso ADN a
dois não incluísse o gene do sexo. Talvez. Sei que não foi esse o caminho
porque nunca nenhum de nós individualmente, nem os dois em conjunto, mencionou
isso, pediu isso, sugeriu isso. A nossa primavera já tinha a escrita, a
leitura, as conversas, as caminhadas, os beijos e as mãos navegantes pelas
ondas agitadas dos corpos adolescentes e não carecia de sexo. Bastou-nos a nossa
deliciosa sexualidade. O explorado e o inexplorado. Ali. À espera de quando
quiséssemos inaugurar esse caminho. Nunca o fizemos. Nunca o percorremos. Nunca
me arrependi disso. Toda a gente precisa da sua memória de ingenuidade e
pureza. Nós guardámos esta. Preciosa. Para sempre. Para todas as primaveras que
se seguissem mesmo que nenhuma fosse, alguma vez mais, em comum. E não foi. E foi
sempre. Às vezes, não é preciso o corpo das pessoas para as pessoas habitarem em
nós. A MJ habita em mim.
Nota do Autor:
Primavera é o segundo de três capítulos de "O Ofício da Memória - 2 - "