O Ofício da Memória – 2 – Primavera



 Primavera

É um dado da cultura popular, o facto da Primavera ser a estação onde tudo explode em som e cor e onde se realiza, de preferência, o amor. Não contrariemos o povo que tem sábios e empíricos conhecimentos a que já vimos a ciência curvar-se por mais do que uma vez.

Era, pois, primavera. E essa manhã, a mesma que já aqui referimos, viria a aquecer e viria a ser uma manhã de beijos e transgressões.

Comecemos pelas transgressões. Não sei se a MJ já alguma vez tinha feito gazeta que era o nome que dávamos quando um aluno faltava deliberadamente a uma aula. Eu nunca tinha feito gazeta. Para mim, as aulas eram sagradas. Afinal de contas, eu ia à escola para assistir às aulas! A própria palavra gazeta tinha, entre alunos e professores, uma conotação justamente pejorativa. Justamente, mas não sempre. Posso dizer com algum orgulho e alguma emoção que a MJ foi a primeira mulher por quem fiz gazeta. E essa manhã de primavera foi o primeiro dia em que tal aconteceu. Talvez tenha sido, também, o meu primeiro pecado de amor. Delicioso pecado, doce transgressão.

Estava calor. Debaixo da enorme ameixieira de jardim corria uma brisa suave. Ela estava de branco. Fomos buscar dois blocos de cimento, desses da construção, que estavam por ali e sentámo-nos neles. Fizemos riscos no chão, mergulhámos no olhar um do outro e conversámos. Descobrimos, de imediato, o gosto pela conversa, pelas ideias, pela leitura e, imagine-se, pela escrita. Ambos adorávamos escrever e adivinhávamos no outro um leitor especialmente interessado. E assim foi. Escrevíamos e líamos um para o outro. E depois conversávamos sobre o que escrevêramos. Quase a terminar o tempo da gazeta, as nossas vozes ficaram mais serenas, tombámos lentamente um para o outro e trocámos o primeiro beijo. Terno, suave, pouco invasivo. E depois um outro mais caloroso e depois um outro ávido e enérgico e depois, ao longo dessa primavera, demos milhares desses beijos voluptuosos. Longos e demorados, curtos e rápidos. De saudação, de despedida, acompanhados por mãos atrevidas ou entregues à suavidade de dois lábios numa testa. E apaixonámo-nos com a mesma naturalidade com que demos o primeiro beijo, partilhámos a primeira Bolacha Maria.

Esperávamos um pelo outro antes de chegar à escola, nos intervalos, na hora da saída e íamos juntos até ao último metro, à última passada possível antes do caminho nos separar. E marcávamos tudo com carinho, com beijos, com festas, com mãos dadas nas mãos. E fomos ficando companheiros e cúmplices e aprendemos a apoiar-nos um ao outro. Uma vez fui fazer um teste. Era importante para mim e ela sabia. Enquanto o fazia, ela escreveu-me palavras de encorajamento numa folha a que juntou uma flor. Guardou tudo num sobrescrito e deu-me à saída. Não sei a relação. Não sei se há relação. Sei que passei no teste. Éramos companheiros. Partilhávamos alegrias e tristezas e ajudávamo-nos mutuamente a conhecer os nossos próprios limites. E beijávamo-nos, meu Deus, como nos beijávamos! E ficávamos minutos intermináveis a olhar um para o outro. Ainda hoje me lembro de pormenores da sua face. A cor dos olhos, as diferentes expressões que fazia, o desenho da sombra e o risco do lápis ou a forma como colocava o rímel, o desenho dos lábios, as ondas do cabelo… e por aqui me fico que havia mais corpo do queixo para baixo mas desse falarei mais adiante e em registo parcimonioso.

A primavera tem outras virtudes. Permite atividades ao ar livre. Não tem os inibidores do inverno nem os desencorajadores do verão. E descobrimos então que gostávamos de fazer algo mais em comum: andar. Pode parecer esquisito para miúdos da escola que têm a oportunidade de passar o tempo todo a beijar-se e a agarrar-se, mas era a mais absoluta verdade. Visitámos todos os jardins, parques e quintas da cidade e arredores. Íamos sem destino, só caminhando lado a lado, admirando a paisagem, os pássaros, as flores e os odores. Ela gostava de explicar-me coisas da Natureza e eu de parar e rabiscar um poema para lho oferecer ou beijá-la terna e avidamente. E caminhámos, caminhámos, subimos montes e cabeços e, uma vez lá em cima, olhávamos para baixo, contemplávamos a paisagem e descíamos tudo outra vez. Alguns dos pormenores dessas aventuras continuam a revisitar-me a consciência e o coração. Numa dessas saídas caminhantes, chegámos a um monte onde estava um depósito de água com uma escada de ferro muito estreita. Ela estava de saias e já ia a meio da escada quando se apercebeu que eu lhe oferecera a primazia de subir na frente no meu próprio interesse de espreitar-lhe as pernas e o mais que Deus me oferecesse à vista. Lembro-me de a ver, de repente, deitar uma mão à saia cingindo-a ao corpo e dizer fingindo-se surpreendida:

         - Ah seu malandreco!

Uma vez lá em cima, contemplámos a paisagem sentados no depósito com as pernas penduradas balançando e batendo com os calcanhares na parede e, por fim, caímos nos braços um do outro, nosso lugar preferido de estar por esses dias. O que apreciávamos era, sobretudo, a companhia um do outro. Isso era o essencial. E fizemos juras de amor. Deliciosas juras de amor. Sempre sem decidir nada que não fosse aquilo que queríamos no momento. E crescemos na intimidade e nessa intimidade houve sexualidade, sim. Mas sexo não. Beijámo-nos das maneiras todas que conseguimos inventar. As mãos dela descobriram o meu corpo mesmo onde eu pensava que não havia nada para descobrir e eu encontrei-lhe as formas todas do corpo de menina-mulher sensual e atraente. Percorri-lhe as curvas, os montes e as planícies em aventuras de desvendar segredos da intimidade. Um dia, num jardim, enquanto nos encontrávamos afanosamente, aproximaram-se uns turistas franceses que, ao depararem connosco, disseram como se fizéssemos parte dos monumentos a visitar:

         - Et voilá, les amoureux!

Rimos em gargalhadas sonoras. Depois fizemos um ar sério e compenetrado. Por baixo da blusa, procurei-lhe os seios que acariciei olhando-a sempre nos olhos e, por fim, abri-lhe um botão mais e beijei-os como se acariciasse um tesouro:

         - És um atrevido. Já chega. Pode vir alguém.

E saiu correndo e rindo e abotoando o botão solto e deixou-me com o calor no tato e o sabor perfumado nos lábios. Aí ficou, o sabor. Para sempre. Às vezes, ainda tenho a sensação que acabei de lhos beijar de novo!

E, em meio de toda esta sensualidade e de toda esta sexualidade que nos trazia ébrios de comunhão, de paixão e de excitação, nunca, sem nunca sabermos porquê, tivemos o impulso de nos deitarmos para fazer sexo como fazem os adultos. Talvez estivesse para além dos nossos limites e da nossa espontaneidade, talvez não o considerássemos porque tudo entre nós era perfeito como estava e não precisava do sexo para ficar melhor, talvez o nosso ADN a dois não incluísse o gene do sexo. Talvez. Sei que não foi esse o caminho porque nunca nenhum de nós individualmente, nem os dois em conjunto, mencionou isso, pediu isso, sugeriu isso. A nossa primavera já tinha a escrita, a leitura, as conversas, as caminhadas, os beijos e as mãos navegantes pelas ondas agitadas dos corpos adolescentes e não carecia de sexo. Bastou-nos a nossa deliciosa sexualidade. O explorado e o inexplorado. Ali. À espera de quando quiséssemos inaugurar esse caminho. Nunca o fizemos. Nunca o percorremos. Nunca me arrependi disso. Toda a gente precisa da sua memória de ingenuidade e pureza. Nós guardámos esta. Preciosa. Para sempre. Para todas as primaveras que se seguissem mesmo que nenhuma fosse, alguma vez mais, em comum. E não foi. E foi sempre. Às vezes, não é preciso o corpo das pessoas para as pessoas habitarem em nós. A MJ habita em mim.


Nota do Autor:
Primavera é o segundo de três capítulos de "O Ofício da Memória - 2 - "

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