É um edifício antigo, de corredores estreitos e portas de
madeira. Tem lâmpadas amarelas e solitárias enforcadas num fio coberto de pó.
Cada porta do corredor tem uma placa em metal branco com um número azul. O chão
é soalho e esteve encerado em tempos. A tinta da parede descasca-se e há
enormes pedaços onde o reboco está visível. À medida que João Paulo e Dulce
caminham, o chão range-lhes debaixo dos pés. O gabinete do Inspetor Patilhas e
seu diligente ajudante Ventoinha seria o último à direita e teria o número 13.
- JP...
- Sim, Dulce...
- Tinhas dito
que ia ser o último à esquerda...
- E qual é a
diferença? Temos de nos apresentar na PJ ficcional e não na real.
- Está bem, mas
disseste que a esquerda era um sinal de azar porque em latim “esquerda” diz-se
“sinistra”... manias! Mas lá que disseste...
- Pronto,
pronto, está bem. Arranjas-me a alhada da PJ e ainda queres precisão e rigor na
escrita! Altera-se já.
- JP...
- Sim, Dulce...
- Que raio de
nomes são esses, Patilhas e Ventoinha? Estás a gozar?
- Estou. Eram
os inspetores dos Parodiantes de Lisboa.
- Dos quê?
- Esquece...
estou a reescrever.
O gabinete do inspetor Patilhas e seu diligente ajudante
Ventoinha seria o último à esquerda e teria o número 13. Bateram.
- Entrem!
Assim que abriu a porta, JP perguntou:
- Como é que
sabia que era mais do que uma pessoa?
- Antes de mais, Bom dia! E depois fique sabendo que
tenho as minhas fontes de informação. Eu trato por tu os seis maiores artolas
do FBUI...
- Do quê?
- Cale-se e sente-se! O senhor é acusado. E essa senhora
também.
- Eu?! De quê?
- De cumplicidade.
- Acusados?!
Senhor Inspetor, peço perdão, mas que eu saiba isto é a PJ, não é um
tribunal... E tanto quanto sei, os senhores ainda estão a averiguar... não se percebe
o quê, nem porquê, mas ainda estão a averiguar.
- O senhor cale-se! Qualquer coisa que diga neste
gabinete pode ser usado contra nós.
- Nós?!
- Sim, vós.
- Vós?!
- Não nós, vós.
- Hã?!
- Deixe-se de confusões. O meu nome é Inspetor Patilhas e
este é o meu ajudante Ventoinha, homem de pouca coragem mas que faz tudo o que
eu mando. Trabalhámos no privado, mas a coisa estava a ficar feia, o negócio
estava fraco. Por causa dos telemóveis e dos computadores já ninguém precisa de
inspetores para resolver casos de adultério e crime. Aparece tudo primeiro na
Internet. Então, viemos operar para o público. Nas secretas.
- Hã?! E nós? O
que estamos aqui a fazer?
- Ventoiiiiiinha...
- Sim chefe, diga chefe, pronto chefe...
- Escreva tudo o que estes alegados senhores disserem
daqui para a frente.
- Da sua secretária para a frente, chefe?
- Não, seu estúpido, deste minuto para a frente.
- E qual minuto, chefe? O do seu relógio ou o do meu?
- Irrraaa que é burro! Cale-se e escreva!
- Sim chefe, é para já chefe.
- Os alegados autores João Paulo Videira e Dulce Morais
alegadamente compareceram nas instalações e nomeadamente da Polícia Judiciária
e alegadamente para serem interrogados, quiçá torturados...
- Hã?! Tá
louco? Torturados?
- Cale-se! Isto aqui não é a sua realidade, é a nossa
ficção.
- Como?
- Sim, caro autor, e alegadamente e o senhor não está lá
fora, está cá dentro.
- Cá dentro de
quê?
- Da escrita. Da ficção. Comporte-se! Ventoiiiiiinha...
- Sim chefe...
- Chegue um copo de água ao alegado autor que ele está a
suar.
- Sim chefe... ... ... aqui tem.
- Ventoiiiiiinha...
- Sim chefe...
- ESSE COPO ESTÁ VAZIO!!!
- Ó chefe, e o chefe disse e um copo de água e o chefe
não disse e um copo COM água.
- Irrraaa que é burro! Mate a sede ao homem!
- E chefe, isso é que vai ser! E com que arma chefe?
- Irrraaa que é burro! Ventoinha, vá ver se eu estou lá
fora!
- Sim chefe. É para já chefe.
Ventoinha abandona o gabinete e Patilhas volta à carga:
- E o senhor alegadamente sabe nomeadamente do que é
acusado?
- Não faço a
mínima ideia, chefe.
- Para si, senhor Inspetor Patilhas!
- Certo.
Desculpe. Senhor Inspetor Patilhas, não precisa estar sempre a dizer
“alegadamente”.
- Culpa sua!
- Culpa minha?
Isso é absurdo.
- Não é não! E o senhor e é que está e alegadamente a escrever
isto! E se quer a minha opinião, eu digo demasiadas vezes alegadamente e
nomeadamente, nomeadamente.
- Touché!
- Vamos e alegadamente, ao que interessa... o senhor é
acusado do crime de abuso sexual de uma personagem de uma história, de seu nome
Belinha, o crime agrava-se porque, ainda por cima, não só é autor do crime,
como da história onde ele decorre pelo que incorre e alegadamente e na pena de
duas prisões perpétuas!
- Duas
perpétuas?! Está louco?!
- Não! Estou em ficção. Não se preocupe, na página
seguinte muda tudo. Mas há mais, sendo e alegadamente e nomeadamente a alegada
vítima casada com uma personagem também ela ficcional, de seu nome Marinho, e
sendo o senhor autor e alegadamente e nomeadamente casado lá fora e como nesta
história realidade e ficção estão misturadas, incorre também no crime de duplo
adultério.
- Duplo?
- Sim! O seu porque o cometeu e o da personagem porque o
escreveu.
- Ah, quer
dizer que eu sou culpado pela galderice da Belinha?!
- Exatamente. E é aqui que entra e a alegada autora e
nomeadamente a Dona Dulce Morais que vai acusada de cumplicidade no alegado
crime.
- Ó senhor
Inspetor, pense comigo, já reparou que essa parte do adultério tem outro tipo
de escrita? ESTÁ CHEIA DE ERROS!!! Porque é ficção e porque a Belinha e o
Marinho são dois energúmenos!
- Confere. Até para mim aquilo está demasiado mal
escrito. Veja lá que escreveram apaichonado
com um “o” no fim e toda a gente sabe que é com um “u”.
- Tirem-me
daqui!!!
- Não posso. Pelo contrário!
- Hã?! Como?!
- Mesmo considerando e a alegada e nomeadamente e a
pertinência da sua argumentação e mesmo admitindo que não praticou o adultério
que escreveram por si, a verdade é que permanecem provas.
- Permanecem
provas?!
- Sim, as fotos. Veja!
Patilhas atira com um maço de fotos para cima da
secretária onde João Paulo aparece em poses comprometedoras com Belinha.
Diversas poses. Muuiiito comprometedoras.
- E o que me diz e nomeadamente agora, senhor autor?
- Que vou
reescrever esta trapalhada toda!
- Demasiado tarde! Enquanto está aqui a ser interrogado,
as personagens Belinha e Marinho foram contactar e nomeadamente um novo autor e
uma nova autora, uns que escrevam bem, para lhes reescreverem a história e
darem um final digno.
- Isso é
impossível!
- Impossível? Nada mais fácil. Não esqueça o alegado
senhor autor que e nomeadamente da mesma forma que entrou na ficção, também as
personagens podem visitar o mundo real.
- Absurdo!
- Ai é? Então espere para ver. Mas vai esperar nos
calabouços. Ventoiiiiiinha...
- Sim chefe, pronto chefe. E o chefe não estava e lá
fora!
- Irrraaa que é burro! Algeme estes dois e leve-os para o
calabouço. Mas, Ventoinha…
- Sim chefe…
- Não os ponha ao pé do Esmaga-Ossos que ele anda
irritadiço e ainda triturava estes dois e também não os ponha ao pé do leão que
eu desde ontem que não dou de comer à besta e podia ser perigoso…
- Atão onde é que eu os ponho, chefe?
- Ó sua cavalgadura, se não ficam com o leão nem com o
Esmaga-Ossos e só temos três celas, têm de ficar na do meio!
- Mas… chefe…
- Sim Ventoinha…
- A do meio não tem porta!
- Irrraaa que é burro! Algeme-os às grades!
- JP…
- Sim, Dulce…
- Acho que
estamos numa cela sem porta com um bruta-montes à esquerda e um leão à direita!
- Não faz mal,
Dulce. O leão está a dormir.
- Deixa-te de
brincadeiras, JP. Como é que vamos sair daqui?
- Sei lá! Tu é
que vais escrever o próximo capítulo!
- Irrraaa que é
burro!