Ato de Pouca Fé


Ato de Pouca Fé


O gume da faca
Entra lentamente na carne
E desaparece.
No movimento inverso
Acontece
Ver-se a lâmina
De novo.


E esperas.
Que entre.
Que saia.
Que respire.


E estranhas não estares morto.
São e consciente,
perfurado
E impotente,
Esvais-te em sangue quente.
E vês.
E sentes toda a dor.
Primeiro, 
Um calor.
E um frio gélido,
Depois.


A luz fenece
Devagar,
Até que chegas a reparar
Que é a tua luz
Que se apaga.
Um manto de breu
Lentamente
Te afaga.
Uma memória escorres,
Um suspiro final
E morres.
No momento trágico
E fatal
Ainda consegues ver
Que não é difícil morrer.


Difícil é aceitar a morte
Estando vivo.
Encarcerado num corpo perdido
Que, exangue, espera!
Já não há sonho,
Nem desejo,
Nem quimera.
Só um respirar
Absurdo e inútil
A antecipar o fim
De uma vida fútil.
Como vãs foram
As vidas todas.


Ser
É nada.
É uma noite
Sem alvorada.
Um mar
Sem rebentação.
Um homem
Sem pulso.
Um amor
Sem emoção.
Ser
É um caminhar ao contrário.
Uma dor
Sem Calvário.
Uma cruz
Sem Cristo.
Ser é um misto
De desistir
Antes de querer,
De viver
Só para morrer,
E querer mais.
Porque queremos?
E mais, ainda por cima,
Se a vida morrerá menina
Sem glória nem devoção,
Sem música
Para a canção...
Nem letra!


A vida
É uma puta sem cliente.
Um filho
De pai ausente.
Um deus ignaro
A guiar o crente.
Pobre crente!
Antes fosse ateu,
Por fé,
Só o breu.
Por reza,
Só o impropério.
Por certeza,
Só o mistério,
A fortuna
De ter coisa nenhuma,
A luz brilhante
Da solidão.
Um pedaço de terra
Sob os pés,
Uma faca na mão,
E outra vez  
O gume
Queimando a alma
Como lume.


Da terra que lavras,
Regada ou enxuta,
Não brotam palavras
De mente sã e arguta.
Tu és só o filho da puta
Sem cliente.
O teu pai é o acaso
E uma nota estendida.
Para além disto,
Não há mais vida,
Não há mais existência
Suportada por douta mente
E esperta ciência.


Eu pecador me confesso
Porque sei e professo
Palavras de nada
E coisa nenhuma.
Verdade há só uma,
A fogo no peito gravada,
Não há vida, nem alma, nem chama:
A única verdade é nada!
jpv

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