A Paixão de Madalena - Capítulo 4

A Paixão de Madalena


Livro I - A Paixão de Madalena

4.-Florence!
-Presente!
-Jacques!
-Presente!
-Louis!
-Presente!
-Madelaine!
-…
-Madelaine! Não há uma Madelaine aqui?
-Não.
-E tu, quem és?
-Eu sou a Madalena.
-A Madelaine, portanto!
-Não. A Madalena. Como saberá, os nomes não se traduzem.
-E tu és a engraçadinha, portanto.
-Não, eu sou a Madalena
-Madaléna?
-Não se pronuncia assim, mas terá de servir.
-E que livro é esse em cima da tua secretária?
-"Orgulho e Preconceito" é da…
-Eu sei bem de quem é! É uma das minhas autoras preferidas e esse é um dos meu livros favoritos.
-Quer então dizer que tem mais jeito para escolher livros do que para pronunciar nomes…
-Tu és atrevida!
-Só quando me provocam.
Quando disse isto, Madalena ruborizou completamente e, aquela que teria sido uma frase de vitória, foi um dar de flanco.  Acontece que Kyle não tirou partido disso. Reconheceu-lhe a inusitada coragem, a maioria não teria ido tão longe, mas sabia que estava em posição de vantagem e não quis abusar disso. Ficou intrigado, contudo, com aquela mescla de pureza e atrevimento. Fizeram-se as apresentações, estabeleceram-se as regras de funcionamento da disciplina de Inglês e na hora da saída, Kyle fez um gesto a Madalena pedindo-lhe que ficasse.
-Estou intrigado…
-Com o quê?
-Diz aqui na tua identificação que és portuguesa.
-E sou! Genebra está repleta deles.
-Sim, mas o que faz uma portuguesa em Genebra a ler um livro inglês traduzido em francês… O natural seria estares a ler uma tradução em português…
-Eu quase não sei português. Só o básico, Bom dia, Boa Tarde, e frases curtas e utilitárias…
-E como veio isso a suceder?
-É a história da minha vida, mas acho que não lhe diz respeito. Digamos que vim para cá muito pequenina…
-De Portugal.
-Não. De Londres e antes disso do Quénia e antes disso de Macau, mas, sinceramente, não me apetece falar disso… quase não o conheço.
-Correto. Mas…
-Sim…
-Tens idade para ler esse livro?
-Ha ha ha ha…
-Porque te ris?
-Pela sua presunção! É para aí a quarta vez que leio este livro e só estou a relê-lo porque não consigo comprar mais…
-Tens a biblioteca.
-Estive lá ontem. Não há lá nada que valha a pena ser lido que eu não tenha devorado já!
-Exagero!
-Teste-me!
-Guerra e Paz?
-Fácil, Tolstoi.
-Crime e Castigo?
-Outra fácil, Dostoievski.
-O Senhor das Moscas?
-Mais rebuscado, Golding.
-Cem Anos de Solidão?
-Garcia Marquez… isso não vai ficar um bocadinho mais difícil?
-O Jardim das Quimeras?
-Sim, esse não é para qualquer um, mas adorei... Marguerite Yourcenar. Agora é a minha vez…
-Venha…
-Pavel Pavlovitch?
-Hummm… isso traz água no bico… como autor não conheço… como título também não… apanhaste-me… ou fizeste batota!
-É a personagem principal de "O Eterno Marido" do seu Dostoievski…
-Batoteira, mudaste as regras do jogo. Gosto desse livro... e do autor. Como sabias que eu gostava do Fiodor?
-Básico, a primeira obra que perguntou era dele…
-Poderia ser casual…
-O professor não é um homem de casualidades!
-Mas afinal quantos anos tens tu?
-Catorze.
-És tão novinha!
-Não sou nada. Novinhas são as minhas colegas de turma que só têm catorze anos! Enfim, aquela dos risinhos tem quinze e é ainda mais nova do que as outras!
-Hummm… isto vai ser giro…
-Senhor Mckenzie?
-Sim…
-Porque é que está triste?
-Não estou. Já chega, reunião terminada, podes ir embora Madaléna de Portugal que não fala português e andou a correr mundo antes de me aterrar em cima!
-Madalena!

Não saberemos nunca, se no momento de expirar-se a última gota de água no nosso planeta, um ser humano estará no local para presenciar o evento, quem sabe, cheio de sede, sacudindo o fundo de um cantil e recebendo essa gota nos lábios saciando-lhes, pela última vez, um resquício dessa mesma sede. Provavelmente, quando vier a acontecer tal desgraça, já não haverá seres humanos. E, contudo, passamos os dias da nossa vida usando expressões como "até à última gota" sendo que, não saberemos o que será, nem como será essa gota. Vale a expressão, não pela última gota, mas pelo valor dado ao inestimável e indispensável líquido que nos sustenta a vida. Este encontro com Madalena reabriu o espírito de Kyle Mckenzie e, mesmo que o não saiba ainda, há de devolver-lhe a esperança e há de fazê-lo querer sorver a vida até à última gota.

Depois de um percurso intermitente e deambulante  pelo mundo, que contaremos com pormenor chegada a altura de o fazer, que, também nós, escritores, temos os nossos caprichos, Madalena veio instalar-se em Genebra com Albertina, mãe de sua mãe, e sua mãe desde tenra idade. Dizemos por vezes que ser avó é ser mãe duas vezes, pois no caso de Albertina, ser avó de Madalena foi ser sua mãe pois que muito cedo lhe foi entregue e a seu cuidado ficou. Agradecida está Madalena por ter tido essa proteção e o Universo, em seus misteriosos desígnios, lhe há de pedir que devolva a generosidade o que ela fará com dedicação e amor. Por agora, importa saber que Madalena está há dois anos em Genebra, é fluente em inglês e em francês e está, desde que chegou à cidade das neves, pela primeira vez, numa escola pública. Tem tido excelentes resultados, mas quase não tem amigos. Chega à escola, vai às aulas, regressa a casa, e nos intervalos de tempo que possa ter, dedica-se à maior das suas paixões: lê.  Albertina, a avó-mãe, não só nunca lhe cerceou o ímpeto e o gosto, como lho fomentou e lho alimentou sempre que pode. Aos oito anos já lia alguns dos clássicos da literatura mundial e sempre que lhe surgiam dúvidas, fossem vocabulares, fossem das intrincadas razões das pessoas para serem pessoas, Albertina explicava-lhe com simplicidade e com naturalidade as coisas tal como a vida lhas ensinara.

É curioso como por vezes se pensa que a atração entre duas pessoas é física. E como se pensa também que, não sendo física, é do foro das emoções, como o amor, por exemplo, tendo depois a sua concretização física. Em todo o caso, está a atração entre duas pessoas distanciada quase sempre, e na sua génese, das zonas racionais e inteletuais. Madalena e Kyle são prova de que este senso comum é falho de precisão. Para que duas pessoas se sintam atraídas, basta que se sintam atraídas. A causa da coisa pode bem ser do âmbito racional ou intelectual, como foi o caso. Madalena foi ficando mais vezes no final das aulas e depois mais vezes ainda e depois começaram a encontrar-se, ocasionalmente e sem qualquer arranjo, no refeitório e as suas conversas eram sobre literatura e livros e a interpretação das coisas escritas e do seu sentido na vida que nos é comum. E quando sucedia que, por qualquer razão alheia a ambos ou por propositada prudência de Kyle, não ficavam conversando uns minutos no fim da aula ou à hora do almoço, Madalena sentia-se como se algo lhe tivesse faltado naquele dia e Kyle sentia-se como se naquele dia algo lhe tivesse faltado. Discutiam questões de gosto, debatiam as intenções dos autores, analisavam estilos, esquadrinharam o romantismo de Lord Byron, Jane Austen e Victor Hugo, discutiram os realistas, os neo-realistas, os existencialistas, e aqueles que discutiram só porque quiseram discuti-los, só porque tinham gostado de um livro anónimo de um autor desconhecido. E o tempo e as conversas foram traçando caminhos de emoção no peito e na mente e, sabemos nós e saberá o leitor, em fazendo as contas que são de matemática simples, que havia entre a aluna e o professor vinte e cinco anos de diferença na idade que a cronologia dos dias marcou. E, no entanto, os seus corações não viam essa diferença, as suas mentes não sentiam essa assimetria de tão ocupados que estavam com o estímulo intelectual que cada um representava para o outro. E como sempre acontece quando as pessoas se revelam pelas palavras e pelo sentido que vai nelas, começaram a conhecer-se.  Madalena percebeu que o professor de inglês, não era só um professor de inglês, havia um homem sensível e magoado e havia, não obstante o traço triste que sempre o acompanhava, um sonhador, um menino de olho azul que continuava a acreditar nas pessoas. Percebeu, também, que estava divorciado e percebeu que essa era uma ferida muito recente em que ele evitava tocar a todo o custo. Como quando levantamos um penso de uma ferida fresca e a pele vem agarrada. Este homem era, sobretudo, um espírito livre, um amante da vida e de viver, uma pessoa de mente aberta e mentalidade plural e, sendo muito mais velho, era charmoso. Um dia deu consigo a pensar na diferença entre bonito e charmoso. De facto, não podia dizer-se que o professor Kyle fosse bonito. Já o fora, por certo, mas demasiadas dores e algum tempo lhe haviam passado pelo corpo e pelo olhar. E gostava de mulheres, ai isso é que gostava, via-se bem na forma enlevada como falava da sua graciosidade e harmonia. E havia em si uma aura de magnética paz, de boa disposição e de entendimento que puxava. Apetecia estar com ele. A verdade é que Madalena se sentia atraída pelo professor de inglês e em pouco tempo, que estas coisas nunca levam muito, se apaixonou por ele. Só que não soube. Se soubesse talvez tivesse recuado por via de uma montanha de preconceitos que se avistava ao longe como as que cercam Genebra. Quando veio a saber, era já incapaz de recuar. Em abono da mesma verdade que ainda agora se invocou, as coisas não foram iguais na cabeça de Kyle. Foram conscientes, medidas, pesadas e calculadas desde o primeiro momento. Ele soube de imediato, logo naquela primeira chamada, que aquela miúda mexia consigo. Aquele misto de ingenuidade e atrevimento era condimento irresistível. Aquela miúda corava com uma facilidade inusitada e, ao mesmo tempo, debatia literatura e a vida com a maturidade de uma mulher crescida. Kyle sabia que se tratava somente de uma rapariga de catorze anos, mas sabia também que tinha na sua frente uma mulher com mais maturidade do que a maioria das mulheres que ele conhecera, de algumas das suas colegas de trabalho, por exemplo. Retraiu qualquer impulso afetivo que estivesse para além da comunhão das ideias que ambos procuravam e analisavam nos livros que liam, mas sabia que o impulso estava lá. Por vezes, sentia-se mal. Pensava na idade dela, Mas onde raio é que andas com a cabeça, irlandês casmurro, é só uma adolescente! Outras vezes pensava na maturidade dela e nas coisas que passara a vida a ensinar na faculdade e agora também a estes, que o amor não escolhe raça, género nem idade, acontece e pronto. E debatia-se entre aquilo que ensinava aos outros  e a coragem de seguir o seu próprio impulso. Um dia marcaram-lhe um desses infindáveis e dolorosos exames. As coisas não correram como esperado e ficou duas semanas em casa acompanhado por uma enfermeira. Na escola disseram somente que o senhor McKenzie estava doente e seria substituído temporariamente por fulano de tal. Ele chorou na cama a sua sorte, quando o coração lhe pedia vida, o corpo negava-lha. E chorou a ausência de Madalena. A enfermeira, com aspeto muito frio e distante, surpreendeu-o, Por que chora, senhor Mckenkie? Está com dores? Não, não tenho dores! Calculei, um choro assim profundo e sentido não vem do corpo, vem da alma, o senhor está com dores de alma? Kyle olhou-a surpreendido e disse-lhe, Acho que sim, e contou-lhe tudo o que estava a passar. Senhor Kyle, estou habituada a ver corpos abertos, a sangrar, a deitar pus, homens de barba rija a gritarem como crianças, mas acho que nunca vi um coração assim dilacerado. A sua história é impressionante e ingénua e pura… Sabe, eu seguiria esse amor, se essa jovem soubesse no que se estava a meter, se a família soubesse no que ela se estava a meter, se o senhor não fosse mais professor dela… percebe… o problema, a meu ver, não é a idade, é o seu relacionamento profissional com a jovem.

-Está melhor?
-Eu não vou melhorar, mas por agora estou.
-Ainda bem. Gosto de saber isso. Não tinha mesmo como avisar?
-Avisar? Eu pedi que avisassem…
-Sim à turma em geral, disseram que estava doente, mas nós, quer dizer eu… pensei…
-Sim. Pensei em fazer-te chegar um recado só a ti a dizer que estava tudo bem, que eram só uns exames, mas… não sei… achei mais prudente não fazê-lo… porquê tratar de modo diferente uma aluna?
-Uma aluna?! É isso que sou para si?
-Que mais podes ser, Madaléna?
-Se não cabe mais nada na sua cabeça, então tem razão… que mais? Nada.
-Cabe na minha cabeça, cabe no meu coração, mas e os outros? Que dirão as pessoas? Tenho mais vinte e cinco anos do que tu e tu… por mais maturidade que tenhas, és só uma adolescente… não quero magoar-te, mas…
-Mas só ficou o preconceito. Já não há orgulho e amor talvez nunca tenha havido…
-Madaléna, imagina que assumíamos tudo o que houvesse para assumir, imagina que tudo era aceite, e não vai ser, imagina que tudo corria bem entre nós e à nossa volta, mesmo assim, eu tenho cancro Madaléna, isto vai matar-me em breve, não me resta muito tempo e o pouco que resta adivinha-se um tempo de sofrimento…
-E como tal, o melhor que encontra para fazer é negar a vida que lhe resta viver! É negar os sentimentos que nutre pelas pessoas que o rodeiam, é… enfim, é morrer antes de ter morrido! Eu estou a falar com o professor McKenzie ou com o cadáver dele?
-Cala-te miúda atrevida, não brinques com o que não conheces!
-Eu não estava a brincar…
-Cala-te!

Durante essa semana não voltaram a falar-se. Ele entrava na sala, chamava os alunos, corrigia os trabalhos de casa em os havendo, dava a aula, fazia perguntas, a ela também, ela mostrava-se atenta, respondia quando alguma pergunta lhe era dirigida e saía da sala sem olhar para ele sabendo que ele estava ocupado a apagar o quadro ou a arrumar os cadernos e não olharia para ela também. E andaram os dois remoendo aquela conversa azeda e relembrando todas as outras interessantes e estimulantes na partilha e na troca de ideias. E outras semanas se passaram até que se digerisse o muito que havia para digerir. Até que se pensasse e pesasse o muito que havia para pensar e pesar. Até que a distância ajudasse a medir a proximidade. E os seus corações serenaram e as suas cabeças discerniram. E um dia, no final da aula, ela deixou-se ficar para trás e quando se dirigia para a porta perguntou:
-Professor McKenzie?
-Sim…
-Todos os irlandeses são assim casmurros ou o senhor é um caso particular?
-Há dois requisitos para se ser irlandês, ser casmurro, beber Guiness e amar portuguesas francófonas que correram meio mundo, amadureceram prematuramente e nos revoltaram o coração no fim da vida!
-A vida não tem fim, Kyle McKenzie.
-Isso é o que veremos, Madaléna…
-Mas… disse dois requisitos e enumerou três…
-Naaa… o terceiro é uma consequência dos dois primeiros!
-Safado!
Madalena deu os dois passos que os separavam e abraçou-se a ele. Kyle retribuiu o abraço com força e ternura e ficaram ali sentindo o imenso amor que os unia até que ele conseguiu dizer:
-Precisamos conversar, miúda.
-Está bem, velhote…
-E preciso conhecer a tua avó.
-Ela já te conhece e sabe as tuas intenções.
-Quais intenções?
-Amares-me para todo o sempre!
-Mas eu nunca disse isso!
-Nem foi preciso, estava escrito na tua cara, no teu corpo e vinha com as tuas palavras mesmo que elas não o dissessem abertamente.
-Safada!
-Sabes quando tive a certeza de que éramos namorados?
-Ai somos?
-Claro que sim, sabes que sim… quando nos zangámos… Eu fui rezingona como a Elizabeth Bennet e tu foste altivo como o Mr. Darcy.
-A vida não é um romance, Madaléna!
-Passas as aulas a dizer o contrário.
-Ainda bem que o ano letivo está quase no fim.
-Porquê?
-Para me livrar de ti e das tuas respostas impertinentes…
-Para te livrares de mim?
-Sim, como aluna. Vamos lá conhecer a avó Albertina!
Não se beijaram. Não era preciso. E também não deram as mãos. Ele acompanhou-a até ao portão e ficou combinado que no sábado de manhã a visitaria para conhecer Albertina.  Continuava a achar que tudo aquilo era uma rematada loucura, mas corria-lhe no peito um Camowen de emoções e excitação. Por momentos, pensou mesmo que um dia venceria o cancro. Fantásticos poderes tem o amor. Cura doenças, traz a imortalidade dos amantes e une as pessoas improváveis em improváveis casais. Brota súbito e poderoso e corre para a morte prenhe de vida como os salmões no Strule.
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