Crónicas de África - Coisas do Quotidiano


Coisas do Quotidiano

Maputo, 16 de outubro de 2012

Esta semana fui, pela primeira vez, assaltado em Maputo. Quer dizer, eu não fui assaltado. Enfim, não sei bem. Um roubo, acho, é quando a gente não vê porque não está presente, 
isso também pode ser um furto. Um assalto é quando a gente vê mas, mesmo assim, tem de entregar o bem que vai ser roubado. Eu explico. Eu estava lá e estava a olhar, mas não vi. Ninguém falou comigo. Logo, acho que isto foi um misto de roubo e assalto. A verdade é que um arrumador ofereceu-me um lugar de estacionamento e eu não aceitei porque quis ficar mais perto do restaurante onde ia almoçar. E fiquei. Fiquei tão perto que, da esplanada onde estava, via bem o carro. Ele lá estava a brilhar de lavadinho. E fui sempre olhando, sempre atento sem lhe tirar o olho de cima. Quando cheguei ao carro, para meu espanto, o espelho retrovisor do lado direito, aquele que estava mesmo de frente para mim, tinha... voado! Devia ter aceitado a oferta do arrumador! Perguntei onde poderia arranjar um. Disseram-me para ir ao mercado da Estrela. Ora, aqui, as pessoas têm o hábito de gravar a matrícula dos carros nas diversas peças, espelhos, faróis da frente, luzes traseiras, vidros das portas e tudo o mais que lhes vem à cabeça. No caso daqueles piscas laterais muito pequeninos, como não há muito espaço para gravar a matrícula, colocam umas tiras de metal por cima deles. Como é que agarram as tiras de metal? Simples. Furam a chapa do carro e enfiam-lhe com dois rebites... É lindo de morrer, ver um tipo que acabou de comprar um carro, voluntariamente mandá-lo furar... hahahaha... eu adoro esta cidade. Como precisava de um espelho e queria gravar umas partes do carro, lá fui ao mercado da Estrela. São duas ruas repletas de bancadas com acessórios automóveis, chaves de rodas, macacos, limpa-pára-brisas, triângulos, capôts, jantes, pneus, pára-choques, emblemas, espelhos, vidros, portas, tudo, tudo, rigorosamente tudo, vendido no meio da rua. Além dos acessórios, também há serviços, por exemplo, lavagem, polimento da chapa, dos faróis, enfim, é um não mais acabar de oferta. Assim que cheguei, mesmo antes de parar o carro, começaram a fazer-me sinais e a oferecer-me coisas. Quando parei, o carro foi cercado por mais de dez rapazes a oferecerem todo o tipo de acessórios e serviços. Saí, disse do que andava à procura e em cinco minutos apareceu um espelho do modelo que eu queria e aplicaram-no logo no sítio, perguntei se gravavam, claro que sim, pedi para gravarem a matrícula nos espelhos e nos faróis da frente e para porem umas tiras de metal nos piscas laterais. A primeira coisa que me disseram quando fechámos negócio foi, Abra aí o capôt! Eu estranhei. Por que raio é que eles querem que eu abra o capôt. E perguntei, Olha lá, para que é que queres o capôt aberto? É a bateria! Nem mais nem ontem, além de pagar o serviço, ainda forneci a energia. As máquinas de gravar que eles usam, assim como os berbequins, são elétricas, eles cortam as fichas dessas ferramentas, colocam uns bornes de agarrar nas baterias e o cliente fornece a energia. Mai nada! Quando o tipo acabou de gravar disse, com um sorriso nos lábios, Já se acabou o pão do ladrão! Estive à conversa com eles e ainda que admita que o ambiente, para quem ali chega, possa ser um pouco intimidador, a verdade é que não passam de uns rapazotes simpáticos e bem dispostos à espera de fazer algum negócio e é possível trocar umas gargalhadas com eles, aliás, em Maputo, a gargalhada está barata, toda a gente tem várias para dar! Um colega disse-me, Foste à Estrela? Não é qualquer um! Mas eu gostei, até estou a pensar lá voltar porque preciso de um macaco em condições, isso e umas escovas para o limpa-pára-brisas.

Outro fenómeno interessante foi a reação das pessoas à chuva. Quando chove, Maputo fica repleta de pequenas e grandes lagoas em todas as ruas e avenidas porque o sistema de escoamento está a precisar de ser revisto. Mas os habitantes não se atrapalham nada, como a água é quente e vai secar daí a nada, em vez de se protegerem muito, desprotegem-se! Pois, puxam as saias, elas, dobram as calças, eles, e enfiam uns chinelos. Depois... depois andam pelas ruas como se a água lá não estivesse. E não vi ninguém a morrer com um ataque de pés molhados!

Outro fenómeno interessante teve a ver com o serviço de costura. Fomos a uma enorme loja de tecidos que, assinale-se, são um dos poucos produtos mais baratos do que em Portugal, e a oferta era tremenda. Corredores e corredores com rolos de tecido e dezenas de empregados disponíveis para ajudar. Ajudar e fazer negócio! Ah pois é! Durante o processo de escolha e compra dos tecidos é comum os empregados oferecerem, eles próprios, os serviços de costura. O E. fez isso connosco. Precisa de coser? Eu coso para si. Tu ou é um serviço aqui da casa? A casa não tem esse serviço, quem cose sou eu mesmo. Tu ou a tua mãe? Ele riu-se com vontade e respondeu, Eu mesmo! E pronto. Comprámos o tecido e ele fez os cortinados. O E. não tem mais de vinte anos. O interessante é que ele próprio comprou aos colegas, em nosso nome, os acessórios, sei lá, ganchos e coisas do género. Ou seja, a casa não se importa que os empregados façam negócio paralelo porque é da maneira que vende mais! Tenho ou não tenho razão para estar a adorar esta terra? É tudo tão simples! Tão verdadeiro.

O trânsito em Maputo é caótico, mas há muito poucos acidentes. É raro ver-se um. A condução é muito instintiva, passa quem passa, às vezes passa quem chega, enfim, tudo muito a olho e tudo muito por intuição. Andava com isto na cabeça a tentar perceber o porquê quando, numa conversa de amigos, se me fez luz. Aqui, como em Portugal, é obrigatório ter seguro, mas a polícia raramente pergunta por ele. E a razão é simples, a polícia quer saber se estamos bem e, eventualmente, dos documentos do carro e dos selos dos impostos, aqui paga-se imposto de circulação e imposto de radiofonia, mas não se interessa muito pelo seguro porque isso é uma coisa que se ativa quando se precisa. E quando é que se precisa? Quando se tem um acidente! Ora, é um facto comummente conhecido que, em Maputo, há uma percentagem muito significativa de veículos que não têm seguro. Isto, só por si, torna a condução mais cautelosa. Obviamente que quem não tem seguro não se quer ver envolvido num acidente!

Recentemente, deparei-me com um exemplo da alegria e da boa disposição que caraterizam este povo. Num supermercado, há um sistema interno de "competição" entre as diversas equipas de funcionários. Aqueles que colecionarem mais pedrinhas azuis que o supermercado disponibiliza aos clientes têm prémios de simpatia no atendimento. Então, eles têm a liberdade de solicitar aos clientes que se sentiram simpaticamente atendidos, uma pedrinha para a coleção. Os do bar tinham escrito uma coisa do tipo, "Caro Cliente, se ficar maravilhado pelo atendimento excepcionalmente excelente..." enfim, arrancaram-me logo um sorriso!

E termino a crónica de hoje com um pormenor tipicamente moçambicano. Um pequeno apontamento que diz bem da simpatia e da alegria destas gentes. Comprámos um despertador com rádio porque gostamos de acordar com música e ouvir as notícias da manhã e a meteorologia e etc e tal... Sintonizámo-lo numa rádio moçambicana, claro. Em Portugal, há aqueles programas matinais em que as pessoas podem telefonar para participar. Normalmente são perguntas a troco de prémios para quem acerte nas repostas ou são fóruns de discussão com temas da atualidade. Pois, aqui em Maputo há uma rádio que, pela manhã, abre a antena aos seus ouvintes só para eles poderem dizer bom dia a alguém! A coisa fica assim, Bom dia, como se chama? Eu sou o Castigo! Castigo e quer dizer bom dia para quem? Eu quero dizer bom dia para a minha dama! E pronto, cada um diz bom dia a uma pessoa dos seus afetos e o prémio é só isso mesmo, essa alegria e essa boa disposição publicamente partilhada. Claro que se eu tivesse outro filho, evitaria chamar-lhe Castigo, mas isso são pormenores de gosto!
jpv
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Algumas imagens relacionadas com esta crónica:

Maravilhoso, excelso e excepcionalmente excelente pedido de uma pedrinha azul!

Exemplo de um retrovisor com a matrícula gravada para evitar tentações.

Exemplo de proteção de um pisca lateral!

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