"A Porta" de Mia Couto


Hoje, depois de um agradável almoço sob a sombra frondosa de uma árvore de líchias no quintal do M e da S, parámos numa livraria a caminho de casa. E comprámos dois livros. Ambos de Mia Couto. Um deles foi a coletânea de crónicas intitulada "O País do Queixa Andar".

Abri o livro e, num só fôlego, devorei a primeira página. Nem sei se chega a ser uma crónica, mas é um texto absolutamente exemplar do olhar cristalino de Mia Couto em relação ao que o rodeia.

Aqui fica o texto e o conselho de comprarem o livro.
jpv
----------------------------------

A Porta

Era uma vez uma porta que, em Moçambique, abria para Moçambique. Junto da porta havia um porteiro.

 Chegou um indiano moçambicano e pediu para passar. O porteiro escutou vozes dizendo:
- Não abras! Essa gente tem mania que passa à frente!

E a porta não foi aberta. Chegou um mulato moçambicano, querendo entrar. De novo, se escutaram protestos:
- Não deixa entrar, esses não são a maioria.

Apareceu um moçambicano branco e o porteiro foi assaltado por protestos:
-Não abre! Esses não são originários!

E a porta não se abriu. Apareceu um negro moçambicano solicitando passagem. E logo surgiram protestos:
- Esse aí é do Sul! Estamos cansados dessas preferências...

E o porteiro negou passagem. Apareceu outro moçambicano de raça negra, reclamando passagem:
- Se você deixar passar esse aí, nós vamos-te acusar de tribalismo!

O porteiro voltou a guardar a chave, negando aceder ao pedido. Foi então que surgiu um estrangeiro, mandando em inglês, com a carteira cheia de dinheiro. Comprou a porta, comprou o porteiro e meteu a chave no bolso. Depois, nunca mais nenhum moçambicano passou por aquela porta que, em tempos, se abria de Moçambique para Moçambique.

Mia Couto
in "O País do Queixa Andar"
Sociedade Editorial Ndjira

NetWorkedBlogs