Operação Ilegal: putos de hoje, aulas de ontem!

Olá mana,
há já uns anos que escrevi um estudo que continha esta rábula que agora te envio. Sempre me pediram que a divulgasse e nunca aconteceu. Hoje, lembrei-me dela e cá vai. Só a rábula, o estudo envio a quem o solicitar.
Beijo,
mano
OPERAÇÃO ILEGAL
[putos d'hoje, aulas d'ontem]
08:29:00 – vinte e quatro jovens educados e compostos, calças vincadas, cabelos alinhados em silêncio respeitoso, de um respeito muito feito de temor aguardam, pacientes, o mestre.
08:29:30 – ao fundo do corredor surge o senhor professor. Alguns endireitam um pouco mais as costas, colocam expressões ainda mais respeitosas e o silêncio agora é total. Alguém importante vai passar.
08:30:00 – a aula, começa. O mestre usa um fato riscado de fazenda. Uma camisa branca e um gravata sóbria completam o ambiente de plena sobriedade que envolve o espaço. O mestre tem uma mala preta de cabedal. Todos os seus haveres estão metodicamente organizados e são só os suficientes, nem demais, nem de menos. O mestre expõe. O silêncio entrou na sala com os demais e veio para ficar. Ninguém tem dúvidas, ninguém ousa.
08:50:00 – paremos, por magia ou facilidade da escrita, a aula neste momento. Das cinco filas de seis carteiras vamos pousar o olhar sobre a terceira carteira da fila do meio. Ao lado de um figurante anónimo para esta história está o João (perdoem-me a originalidade no nome!). Que vê o João?

- De onde está, o João vê a nuca do colega da frente erguer-se alva e ligeiramente inclinada sobre o escuro da fazenda do fato e, quando este se baixa, vê também a nuca do primeiro colega (primeiro em tudo, a localização geográfica no espaço da sala é sintomática, o que faz do nosso-joão-olhos-do-passado-com-funções-de-máquina-do-tempo um aluno mediano!). À sua direita vê, em visão periférica porque levantar muitos olhos, mostrar curiosidade, pode ser mal interpretado, as sombras das costas dos fatos escuros dos colegas. À sua esquerda mantém-se a monotonia simétrica do panorama. Ao fundo, em boca de cena, sobre o estrado, mais alto do que realmente é, está o mestre. Junto à secretária, não encostado a ela. Sóbrio. A secretária tem um aspecto sólido e por detrás um cadeirão. Na parede um Cristo ainda na cruz. Para a direita abre-se a imensidão negra do quadro. Chegar ali só por razões muito boas ou muito más. Mais à direita, ainda ao fundo, chegando ao canto oposto ao do professor um armário médio que guarda paralelepípedos entre outras coisas abafadas pelo pó e, menos poeirenta, a menina de cinco olhos. Por cima deste, uma foto em tons de cinzento e negro do Senhor Presidente do Conselho a quem Portugal está agradecido.
O João não vê mais nada além disto a não ser o seu material geometricamente disposto e organizado sobre o tampo impecável da mesa. Para ele, isto não é bom nem mau. É assim!
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Meio século depois: sejamos francos, não mudámos tanto assim!
Adicionamos umas cores e uns sons à paisagem, somamos uma atitude mais ligeira aos intervenientes, trocamos alguns adereços e a essência mantém-se. As nucas e as costas dos da frente, carteira à esquerda, armário à direita, professor sóbrio pela frente, quadro negro, por vezes irritantemente verde, ainda muitos estrados e o professor expõe. Se tivéssemos mantido o João adormecido na sua sala e o acordássemos agora, estranharia pouco! MAS... mantenhamo-lo adormecido e vejamos como é este João de hoje que ocupa aquele mesmo lugar sem suspeitas da anterior presença de um homónimo.
No pulso, um Casio electrónico com lcd luminoso e não sei quantas teclas com quantas funções. Na sala de jantar tem uma mesinha com um suporte onde estão seis comandos a distância: tv, vídeo, vídeo para gravações, dvd, aparelhagem e ar condicionado. Depois dos Pokemons vai à net e tudo é colorido, tem movimento, cintila, é chamativo e responde.
- O trabalho de História? Fiz uma busca no Alta Vista e já ‘tá!
- Aquela coisa complicada para filosofia? Fui à diciopédia!
Regressa à sala e vai-se aos vídeos sobre vida animal. Hoje não teve tempo para a consola.
Na mesa-de-cabeceira um rádio despertador a despertar a horas diferentes em dias diferentes de acordo com as actividades e horários. Um painel lcd para dominar no micro-ondas antes do leite matinal. Entretanto, antes de sair vai imprimir um teste à mãe, faz dois resets e reinstala a impressora. Demora 15 minutos. Tem sucesso. Vê o pai digitar o número do alarme antes de saírem para o carro que o pai abre com um comando incorporado na chave. O computador de bordo avisa: CUIDADO CARBURANTE. Enquanto o pai conduz rapa do telemóvel, joga dois joguinhos da serpente e vê as mensagens visuais porno-obscenas que o pai importou à socapa da net na noite anterior. Muda-lhe o toque para chatear e quando chega à aula vai ocupar o lugar sombra do João que lá deixámos há cinquenta anos:
OPERAÇÃO ILEGAL!
Puto d’hoje, aula d’ontem!

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