Dia de Todos os Santos

Querida mana,

por mais complexos que possamos parecer ou queiramos assumir, a verdade é que, nós, os humanos, somos seres de síntese. Senão vejamos, há dias para este santo, para aquele santo, para algumas santas e há, depois, o dia de todos os santos. E, em síntese, colocamos os santos todos num mesmo saco que é o saco para onde vão os que se não destacaram por nada a não ser terem tido a coragem de atravessar o tenebroso rio.

Estava aqui a pensar nisto, donde se infere que sou um tipo esquisito, quando me lembrei que o pai, o avô Velez, a avó Ana, o avô Francisco, a avó Lectícia, a Mimi e mais uns quantos humanos que nos preencheram as vidas da juventude já são santos. O que não deixa de ser curioso porque entre estes admiráveis santos havia alguns que celebravam o dia com particular interesse.

Para nós tudo se resumia a um ritual que começava numa visita ao cemitério e terminava entre febras grelhadas na brasa e castanhas assadas nos pinhais de Santa Quitéria com fumos intensos de café de borra aquecido no lume perfumado das carumas.

Só hoje, à distância inultrapassável de umas quantas partidas definitivas, eu percebo o sentido dos rituais porque lhes sinto a falta. A verdade, mana, é que nada pode ser vivido antes do tempo. E é por isso que o dia de todos os santos teve uma altura em que era uma festa e tem, agora, um tempo em que é uma celebração. A celebração dos meus santinhos.

A celebração da dedicação com que o nosso pai nos conduzia até ao local perfeito, a celebração da sua voz moderadamente entusiasmada falando da feira e observando os seus pormenores de vida, a celebração da agitação genuína da Mimi, a celebração da insubstituível falta que me fazem os humanos, que, por serem os meus eleitos, são os meus santinhos, por mim beatificados e canonizados no altar da gratidão, do reconhecimento, do amor nascido de uma vida partilhada.

Se outras razões não houvesse, se outros santos o não justificassem, todos os meus santos de amar justificaram a noite de festa e febras e castanhas e água pé e vozes iluminadas pela companhia e pelo sentir que estamos vivos entre os vivos e, por isso, em condições de celebrar os vivos entre os mortos.

E foi assim que celebrei os meus santinhos, entre amigos, com todos os ingredientes, excepto o frio que muita falta fez por ser catalizador de conversas e por permitir aquele gesto que é uma pessoa agarrar numa chávena de café quente, encolher os ombros dentro da roupa e soprar o bafo à medida que vai comentado "está frio, não está?"...

Beijo,
mano.

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