Por muitos a zero!

Querida mana,
lembro, por vezes, a eternidade das tardes domingueiras passadas a quatro, ou cinco, quando estava a Mimi, e lembro a sua simplicidade tanto como a fruição do tempo. Sermos uma família era mais, muito mais, do que termos laços de sangue. Era estarmos juntos.

O pai sentava-se na sua mesa, fazia contas, lia o jornal, escrevinhava papéis ou abatia-se sobre os braços e adormecia profundamente donde só acordava para comentar o que se estava a passar na tv como que anunciando "eu estou aqui, não estou a dormir". Mas estava e isso não tinha importância nenhuma. A mãe sentava-se costurando uma coisa qualquer, fazia um bolo, conversava ou escapava-se para o quarto, ali mesmo ao lado, donde emergia sonolenta para fazer algumas das coisas que ainda agora referi. Nós andávamos pela sala, no chão, debaixo das mesa, como se esse território nos pertencesse em exclusivo. Espreitávamos a televisão e sobretudo, brincávamos.
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Havia uma actividade que me entretinha imenso. Eu copiava um totobola para uma folha quadriculada e deixava um espaço grande entre o nomes da equipas para registar os golos. E no curso dessses dias distantes várias coisas não tinham acontecido ainda. Não havia transmissões televisivas do futebol e a riqueza do jogo dependia da arte dos senhores que gritavam "Gooooolo!". Da forma como narravam o jogo, das suas opiniões, dos juízos de valor sobre a partida, do colorido que emprestavam às minhas tardes de Domingo. É curioso que, sem tv, havia menos casos de jogo. As faltas eram faltas, os golos aconteciam quando a bola entrava na baliza e, mais do que tudo isto, valia a festa. A festa fazia-se, também, dessa singularidade que era os jogos serem todos ao mesmo tempo, nas imensas tardes de Domingo. Por vezes, o senhor gritava "Goooooolo", eu estava já aos pulos, radiante e festivo, quando ouvia "o árbitro anulou o golo". Era um descer à terra, uma desilusão e retomavam-se as expectativas. E lá ia, Domingo a dentro, registando os golos na minha folha quadriculada.
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Nessa altura, havia o hábito salutar de se investir muito no jogo e menos nas coisas à volta dele e, fosse por isso ou por outra qualquer e desconhecidda razão, havia sempre quem ganhasse por muitos a zero!
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Lembro-me, por esses estranhos e alienígenas tempos, de haver um treinador do Benfica que fazia gala em não fazer substituições e orgulhava-se de sofrer muitos golos porque, dizia, marcava sempre mais.
Os casos nunca se resolviam na tv, não se ganhavam os jogos antes de começarem nem depois de acabarem, e havia sempre muitos golos. Ser do Benfica era, na altura, o mesmo que ganhar por muitos a zero. E, na segunda-feira, todos discutíamos as jogadas que não víramos como se as tivessemos visto. E todos tínhamos certezas. Era o inefável poder da imaginação despertado pela rádio. Havia mesmo alguns de nós que conseguiam dizer "eu vi bem que foi falta!".
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Entretanto, a vida roubou-nos as tardes de Domingo, a rádio perdeu espaço, a televisão ocupou demasiado, os jogos passaram também a ser jogados antes e depois de começarem, o futebol esterilizou-se em tácticas suicidas, e deixou de se ganhar por muitos a zero! Passou a interessar mais o resultado do que o seu volume, deixou de haver vitórias morais, morreu o "fair play", 1-0 é um resultado comum e uma goleada é uma excepção, um motivo de festa. Tudo é esquadrinhado por câmaras, os árbitros são quase tantos como os jogadores e tudo isto estava sem graça nenhuma até ter chegado Jesus!
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O que eu gosto no Benfica de hoje, ou no de ontem à noite, é o despudor com que defende mal, até porque defender não interessa para nada, é a ingenuidade de estar a ganhar por 4 a 0 e os jogadores continuarem a correr como se não houvesse amanhã, loucos, esses loucos, que jogam à bola como cachopos entusiasmados mesmo quando o resultado já está feito. O que eu gosto no Benfica de ontem à noite é que joga dentro do campo para quem cá está fora. O que eu gosto é do renascer da ideia de espectáculo e do que eu gosto mesmo, acima de tudo, em nome da minha infância distante, é que me devolveu a alegria de ganhar por muitos a zero.
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Querida manucha, este mail era para ser sobre política, sobre a apresentação do novo governo do senhor engenheiro que nos vai conduzir nos próximos anos. Mas quem é que quer saber disso quando o Benfica está a ganhar por muitos a zero?!
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O nosso avô e o nosso pai, lá onde estão, seja isso onde for, estão a gozar à brava. À uma, porque eram Benfiquistas à moda antiga, sem "ses" nem "mas". À duas, porque têm lugar cativo e não pagam tv. Será que no Céu há cervejinha e tremoços?
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Beijo divertido,
mano.

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