Estórias ao Acaso: Noite Fria (IX)

Há uma palavra para descrever o seu estado de espírito: encantamento.
Sentia-se renascido com a libertação daquele beijo juvenil, há quinze anos reprimido.
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Ao contrário do que vem sendo costume nestas páginas, não é noite nem está frio. Chamando frio àquele tolhimento que se apodera de nós em Novembro e só parte na Primavera. Brilha um agradável sol de Inverno que conforta a alma e aquece o corpo. Vemo-lo caminhar pela rua, passo firme e apressado. Não tem pressa. É uma energia superior que o move. Enverga o fato e o sobretudo e a gravata com orgulho e um sorriso ilumina-lhe a face. De quando em vez dá umas corridinhas, pequenos saltos enquanto estica a mão para dar uma palmada numa folha esquecida de uma árvore urbana. Apetece-lhe falar com as pessoas que cruza na rua e chega mesmo a saudar algumas. Hoje, vê perfeição na obra do Senhor e encontra graça nas crianças, nos jovens, nos adultos e nos velhinhos. Todas as mulheres são belas e nenhuma o atrai. Conduz depressa enquanto ouve música alto. Muito alto. Abre o vidro do carro e deixa-se invadir pelo fresco do ar. Canta. No trabalho resolve os problemas insolúveis. E os outros também. Produz muito com alegria, cantarolando, sorrindo e, sobretudo, não se cansa.
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Não pensa no beijo senão quando está sozinho. Aí, tenta lembrar-se do calor dos lábios dela, do toque húmido e aveludado, tenta lembrar-se por onde a abraçava e tenta viver tudo de novo... outra vez. Guarda-lhe os gestos, o sorriso e o tom da voz como tesouros preciosos. Este enlevo tem-lhe mudado o semblante e a atitude. E do lado de lá da vida isso foi notado e assinalado. Só então se apercebeu que aquilo que vinha assumindo como vidas separadas era uma só. Apercebeu-se, tragicamente, de que a divisão que fizera de si para consigo no sentir, no pensar, no agir, no estar, aquela coisa de aqui sou eu, ali sou ele, era uma mentira que a sua impotência, que a sua pequenez, que a sua humana limitação tinha inventado para almejar a ícara felicidade de ser vários em vidas diversas, numa Terra só! Pela primeira vez desde o telefonema que o ressuscitou se sentiu verdadeiramente, irremediavelmente, dividido. Bastou que alguém na outra vida tivesse pensado que viviam nela as razões da felicidade que lhe transparecia no rosto. Bastou que transparecesse lá a felicidade daqui.
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Tentou percerber. Tentou perceber-se. Tentou recriminar-se, conter-se. Não conseguiu. É poderosa, a paixão. Tanto, quanto efémera. Arrasa, queima e destrói na ilusão e já cá não está na hora da reconstrução. Procurou as lógicas razões na certeza de que, por aí, encontraria uma solução que apaziguasse o peito e corrigisse o curso da acção. As razões encontradas apontaram-no para a outra vida, para as camadas de dedicação, carinho e compromisso que vinha acumulando há anos. Apontavam para a natural confirmação de uma vida que construíra. Encontrou nessa conclusão, arrancada à mais genuína honestidade que habitava o seu ser, as naturais razões para esquecer o telefonema, as mensagens, as conversas no pc, o beijo e entregar-se ao que sempre se tinha entregado... Mas nesse pensamento houve a interior, subtil, quase secreta alusão ao beijo... Lá no fundo da alma, no côncavo do peito, uma luz brilhou, algo aqueceu e o seu coração, quase moribundo de razão, recomeçou a bater devagarinho e daí a pouco estava de novo cavalgando memórias e emoções e, mais grave, as fronteiras da vida que ainda agora discernia tão claramente estavam de novo esfumando-se na poeira levantada por aquele cavalgar apaixonado do peito. A uma, queria-a porque a descobrira. À outra, queria-a porque fora descoberto por ela.
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Este homem que aqui vemos sentado à mesa rectangular de uma reunião que não vai acabar tão depressa ainda não se percebeu mas já se decidiu. Decidiu que prefere arrepender-se de ter vivido erradamente do que de não ter vivido. Decidiu que não conhece por onde o levará a estrada da vida em que está mas quer caminhá-la. Decidiu que Deus não pode dar-lhe duas vidas maravilhosas e obrigá-lo a viver uma só. Decidiu que não sabe muito bem o que lhe reserva o futuro mas quer ir lá ver. Quer afastar a imensa neblina que o impede de ver. E quer fazê-lo vivendo.
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Este homem que aqui vemos não é um homem de ficar à espera. Levantou-se do seu lugar. Abandonou a sala. Tirou o telemóvel do bolso e marcou o número dela. Leva-o ao ouvido enquanto coloca os olhos no chão onde risca umas ovais imaginárias com a ponta do sapato. Está a chamar...

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