Estórias ao Acaso: Noite Fria (VIII)

Vários dias tinham passado desde que os amantes das palavras, pelas palavras, com as palavras haviam caminhado juntos pela cidade e trocado um beijo apaixonado num banco de jardim e, contudo, a ela parecia-lhe que tinha sido mesmo agora. Juraria que trazia ainda o cheiro dele na sua roupa, o som das suas palavras ainda lhe ecoava na cabeça... "Quero fazer amor contigo!"
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Acreditando que as pessoas se definem pelos seus rituais e pelas suas opções, é importante referir-se que ela nunca fora uma pessoa de centros comerciais. O seu mundo e o equilíbrio dele exigiam-lhe uma outra tranquilidade. Para poder viver tumultuos e enfrentá-los e superá-los, a sua vida tinha de ser um contínuo de paz nem que para tal abdicasse. E abdicava muitas vezes de muitas coisas, opções, propostas, trabalhos, promessas, ofertas, passeios, noitadas... abdicava porque precisava da força interior de estar consigo em paz. Hoje, contudo, procurara um centro comercial. Queria abafar o eco das palavras dele no ruído das gentes. Queria olhar para as pessoas e pensar que se cruzavam com ela outras mulheres apaixonadas a quem tinham prometido amor e queria ver-lhes as faces, reparar se sorriam ou estavam apreensivas, tentar perceber se aceitariam dar o passo ou recuariam diante do altar da entrega total. Chegou mesmo a desejar que uma dessas existências anónimas lhe lesse a alma e viesse partilhar consigo uma experiência semelhante: "Propuseram-lhe amor, não foi? Ele é perfeito, não é? Pois, já percebi, tem outra vida. Oiça, não pense em termos de vidas, nem na vida dos outros, a outra vida dele é dele não é sua. Viva a sua vida! E ame-o, ame-o como nunca amou nem desejou amar!" Queria, hoje, estar longe de si, do seu mundo em circuito fechado e queria perder-se entre as gentes como se fosse só mais uma pessoa normal que passa ou vagueia num centro comercial. Parou em frente de uma montra de roupas, com manequins modernaços, com as feições e as formas do corpo perfeitamente esculpidas e pensou que alguns daqueles bonecos eram obras de arte. Ficou olhando a exposição, a conjugação das cores, os botins que davam com o casaco e a carteira. Este ano era o lilás. Ficou olhando por fora mas por dentro não os via. Por dentro, na sua mente, no seu coração, no sangue que lhe corria nas veias e nas artérias, no seu corpo inteiro de mulher inteira não cabia mais nada. Nem sapatos, nem casacos, nem acessórios, nada. Só um imenso eco que lhe sobressaltava o coração a todo instante como se se tivesse esquecido de algo muito importante e lhe viesse de repente a lembrança à cabeça e ao corpo: "Quero fazer amor contigo!"
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Enlevada nesta entrega e nesta situação nova que a vida lhe tinha criado deu consigo a percorrer umas ruas mais estreitinhas e labirínticas do pensamento. Estava apaixonada, devotamente apaixonada, não sentia, de há uns dias para cá, outra coisa nos lábios e na boca que não fosse o toque húmido e quente dele, não desejava nada, tão ardentemente, como estar ao seu lado, conversar as suas conversas, rir as suas gargalhadas, franzir o sobrolho com as suas preocupações. Sabia que havia outra vida na vida dele. Mas não tinha, ainda agora, imaginado uma transeunte dizendo-lhe que essa era só dele? E o que ela queria era viver a sua própria vida, amar o seu amor, morrer a sua morte porque tudo isto é intransmissível. Sabia que não podia exigir-lhe nada. Isso mesmo haviam acertado entre si até àquele beijo e àquela frase. Sabia que os momentos passados em conjunto eram de uma harmonia impensável, quase cinematográfica, a lembrar Humphrey Bogart e Lauren Bacall na tela. Era quase como se ela soubesse sempre o que ele ia dizer ou fazer e ele o fizesse ou dissesse e mesmo assim a surpreendesse. Talvez ela não soubesse mas desejasse intensamente. E ele era o homem de realizar os seus desejos da alma.
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Estava perdida nesta trama prazenteira de amá-lo à distância quando percebeu que havia um equívoco na maneira como se estava a comportar consigo mesma. A forma como se sentiu envolvida pela presença dele volvidos todos estes anos, a forma como se sentiu surpreendida por aquele desejo que era também o seu, ele apenas tinha tido a coragem de o trazer à luz do dia num banco de jardim, estavam a criar de si para consigo a exigência de uma decisão. O próximo passo. Mas, a verdade é que ele não perguntara se ela queria fazer amor consigo: "Queres fazer amor comigo?". Ele exclamara, das entranhas corajosas, do desespero de não poder estar mais quinze anos sufocando as palavras, que queria fazer amor com ela: "Quero fazer amor contigo!".
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Decidiu não decidir. Decidiu deixar-se amar se o amor viesse ter consigo. Decidiu deixar-se tomar pelo seu corpo como já tinha sido tomada pelas palavras se ele viesse a tanto. Se ele cruzasse a fronteira da vida que os separava, ela ama-lo-ia com a alma e o corpo das formas e nas nuance todas que conhecia!
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Estava, assim, de frente para a última moda de sapatos enfileirados alternando com botas ousadas, entretida, amando-o e esperando que ele a amasse, quando no universo complexo e rico da sua mala o telemóvel tocou. Vasculhou por entre a profusão de objectos, todos com uma utilidade e com um momento para serem usados, até que viu a luz do visor piscando. Agarrou o aparelho, trouxe-o à luz artificial do centro comercial e viu quem estava batendo à porta da sua vida. Era ele.

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