Os leitores sabem como gosto de transcrever uma boa conversa. Boa no sentido de interessante pelo seu curso, de genuína pela sua espontaneidade ou de rica pelo seu conteúdo. Esta é mais do primeiro tipo com laivos do segundo.
Vamos à circunstância e às personagens.
Dia de trabalho muito cansativo. Alma a precisar de descanso. O Andante do concerto nº 21 de Mozart no mp4 parece convidar para ser ouvido. Estava a desenrolar os auriculares para os colocar nos ouvidos quando elas entraram.
Eram três velhas gaiteiras, daquelas que, de vez em quando, arranjam uma doença suficientemente grave para irem a Lisboa fazer uns exames e deixar os maridos em casa com o comer num tacho para levar ao lume, mas não tão grave que as impeça de sair de casa às cinco da manhã e voltar às oito da noite com os exames feitos, a baixa pombalina toda palmilhada, as montras vistas e revistas, as lojas visitadas, as pastelarias provadas e toda a luz e cor e agitação da grande urbe a passar-lhes pela vista, a entrar-lhes na memória e a ser motivo de conversa para sempre. Cabelos arranjados, todas de óculos, muitas jóias ao pescoço e nos dedos e a pele indelevelmente marcada pelo amanho da terra, pelo agreste tempo passado no campo em cuidados e desvelos agrícolas.
Não vou identificá-las. Só acrescentar que era uma, unicamente uma, a que ia fazer exames. As outras eram acompanhantes na dor e na desgraça! Eu estava numa correnteza de três bancos. Elas chegaram, inspeccionaram-me com os olhos de alto a baixo, devem ter aprovado a companhia e uma delas disse:
- Ficamos aqui.
- Ficamos aqui.
- Pode ser, ficamos aqui.
Coloquei os auriculares sem música para poder ouvi-las sem lhes inibir o diálogo. Não me despertou interesse o conteúdo da conversa. Só a sua espontaneidade e a caótica sequência. Caótica para quem ia a ouvir porque elas entendiam-se bem entre si.
Interregional das 18:18, Santa Apolónia - Tomar.
- Ficamos aqui.
- Ficamos aqui.
- Pode ser, ficamos aqui.
- Fofinho!
- Achas?
- Acho
- Mas são estreitos.
- Cabemos bem.
- Liga ó tê Manel.
- Já ligo.
- Ligas quando?
- No Entroncamento.
- No Entroncamento?
- Sim, e ele vai-nos esperar à Lamarosa.
- Óvistes? Ela vai ligar ó Manel para nos ir buscar à Lamarosa. Olha lá, isto pára aonde?
- Vila Franca, Santarém, Entroncamento e Lamarosa.
- Passou-se bem...
- Muito bem!
- Bem melhor que estar em casa a aturá-los...
- E a fazer o comer.
- Foi bem bonito!
- Bem bonito!
- Olha lá, e os exames?
- Estão feitos. Agora é esperar.
- Mas sentes-te bem...
- Sinto... Gosto tanto de vir à baixa!
- A médica era simpática...
- Era...
- Só me incomoda este tempo...
- Tempo?
- Sim. Às seis horas é de noite.
- Tens razão, é uma confusão.
- Olha até o meu gato anda tonto. Nunca sabe que horas são e se ele é certinho com as horas...
- O teu gato sabe as horas?!
- Sempre soube. Mas neste tempo troca tudo. Às cinco da tarde está-me a querer entrar em casa para dormir.
- Liga ó tê Manel.
- Ainda é cedo.
- Que horas são?
- Ainda é antes de Santarém.
- Olha lá, onde é que isto pára?
- Santarém, Entroncamento e Lamarosa.
- Ah pois, ela disse que ligava ó Manel no Entroncamento.
- Olha lá, e quando é que fazes mais exames?
- Não sei bem, mas tem de ser breve...
- Então? Estás mal?
- Não, mas ela ficou de vir ver aquelas linhas...
- Quais linhas?
- As outras.
- Eh pá, aquela ali atrás não se cala.
- Pois não. Fala pelos cotovelos.
- Vai aqui este senhor a querer escrever a carta...
- Qual carta? Não vês que não é uma carta?
- Porquê?
- Porque vai a escrever num caderno.
- Falem baixo!
- Então?
- Ele pode ouvir...
- Naaa... leva aquela coisa da música nos ouvidos, aquilo não se ouve nada cá para fora.
- Olha lá...
- Sim...
- Já ligaste ó tê Manel?
- Não vês que não. Ela só lhe liga no Entroncamento...
- (...)
- Tô? Manel? Vai lá ter à estação, já vamos aqui quase no Entroncamento.
- (...)
- Sei lá eu. Tenho de esperar pelos resultados.
- (...)
- Vamos derreadinhas, aquilo é filas sem fim.
- Então? Ele vai lá?
- Vai. Que remédio tem ele!