Curtas do Metro - Elegância Monocromática

Elegância Monocromática

Sem história. Só uma pessoa. E há pessoas sem história? Não! Mas esta pessoa não tem história para mim e, contudo, é fantástica! Tão fantástica quanto discreta.

Quase todos os dias nos cruzamos ali algures entre a Baixa/Chiado e o Cais do Sodré onde apanha um dos autocarros que uso para chegar ao trabalho.

É magra e quase alta. Tem uma silhueta esguia e fina. Uma pele claríssima donde emergem os olhos tristes e os lábios bem definidos, desenhados com precisão geométrica fazendo um W invertido. E, a emoldurar este quadro, o cabelo. Uma cabeleira longa e lisa de um negro espesso e brilhante. Tem sempre um ar sério, de dia por começar, o passo é miudinho e despachado e desliza deixando para trás a marca da sua suave presença.

Mãos largas, pulsos finos, um deles tatuado sem excesso e com gosto, música nos ouvidos. Sempre.

O traço que a distingue das outras pessoas no turbilhão do quotidiano, é vestir integralmente de negro. Sempre. Botas negras, sapatos rasos negros e, no verão, sandálias negras. Calças de ganga ou sarja, sempre negras. Pode trazer saias compridas, a rasar o chão. Sempre negras. Por vezes, junta uns apontamentos em renda ou tule, mas sem nunca mudar a cor. As blusas são negras, como são negros os casaquinhos de malha que, uma vez por outra, veste a cobrir-lhe os ombros. Normalmente, traz uma mala negra, tem uma original, de que gosto particularmente, com uma teia de aranha. Óculos de sol, largos e redondos. Negros!

Os poucos apontamentos de cor que lhe notei são discretos. Uma blusa encarnada a despontar cor por baixo de uma outra negra com transparências, assim como que a anunciar, no escuro, o fulgor do vermelho. Uma renda azul-petróleo, discreta, a tornear os ombros cobertos de negro.

Há ali todo um culto, uma devoção monocromática, uma simplicidade na continuidade da escolha. E, no entanto, quando passa, arrasta luz consigo.

E lá vai ela para o trabalho, passo pressuroso e miúdo, corpo esguio e definido, elegância monocromática a despertar-me para o dia, ali ao Cais do Sodré, com a pele alva a sobressair-lhe do negrume das roupas.

É daquelas pessoas que marca. Um dia destes não me cruzei com ela e senti uma falta. Decidi escrever. Quando nos faz falta uma pessoa que não conhecemos é porque, quer queiramos, quer não, já nos marcou. E esta eu percebo porquê. Consegue, dentro da restrição da cor, transportar leveza e elegância. É curiosa esta cidade. São curiosas as pessoas nela. Pode acontecer que não nos pertençam, não as conheçamos, sequer, e nos façam falta. Quando a não vejo, sinto falta do colorido da sua elegância monocromática.

Sem história. Eu disse.

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