O Clã do Comboio - Um Companheiro Tolerável



Um Companheiro Tolerável


Desde que viajo em comboios regionais, tenho reparado num pormenor interessante. São muito mais concorridos. Estão sempre cheios. É como se houvesse sempre duas multidões. Uma a querer ir para Lisboa e outra a querer sair de Lisboa. A toda a hora!
O que isto tem de menos bom é que se torna um bocadinho mais desconfortável viajar como sardinha enlatada. O positivo é que a fauna é muito mais profusa e diversa. E presta-se a um jogo. Sempre que regresso a casa, entro em Sta. Apolónia onde o comboio não fica cheio mas, seis minutos depois, no Oriente, atafulha. Leva sempre gente em pé. Ora, isto cria uma certeza. Sei sempre que alguém vai sentar-se ao meu lado. O jogo é tentar adivinhar quem. Será a velha conversadeira que não se cala até que eu saia em Riachos? Será o velho gordo que me entala contra a janela? Será a mãe de família que telefona para a cresce, o marido, a mãe dela ou a sogra, e põe tudo a mexer mesmo antes de chegar a casa? Serão aquelas duas amigas que vêm juntas do trabalho e fazem as fofocas todas no comboio? Será o tipo magro e circunspecto que abre o computador e vai o caminho todo a trabalhar? Será a senhora de meia-idade que não para de ler? A solteirona que ouve música pelo auricular? Ou serão os dois militares que vão a pôr em dia as promoções lá do serviço... quando as houver?

Se, por ventura, o amável leitor imagina que enumerei as tipologias todas de passageiros, desengane-se. Ainda falta o jovem alternativo com roupas largas e sujas, rastas no cabelo e faixa de lã na cabeça, a segurar o cabelo, com as cores da Jamaica. O tipo andrajoso com cheiro insuportável e um carrinho de transportar compras cheio tralha. As adolescentes em manada, aos gritinhos e aos sms e essa raríssima espécie que é a miúda gira. Sorri, dá as boas-tardes e segue compenetrada e bela nas suas roupas distintas exalando um inebriante perfume.

Enfim, agora estão quase todos. Mesmo assim, um dia destes, sentou-se ao meu lado o mais improvável dos companheiros de viagem. Um saco da tropa! Não. Não foi um tropa. Foi um saco da tropa.

Eu explico. À minha frente, três lugares. O do meio, vazio. Os das extremidades, ocupados pela mãe de família e pela senhora de meia-idade que lê. Eu, junto à janela. Ao meu lado, nada. Na ponta oposta à minha, a solteirona que ouve música pelo auricular. Entra um jovem. Jovem no aspeto e na atitude. Traz consigo uma mochila de tamanho considerável e um enorme saco da tropa. Repara que vamos quatro para seis lugares e repara que os lugares vagos são frente a frente, ao meio. Não está com meias medidas:

- Com licença.

Sentou-se entre a mãe de família e a senhora que lê, colocou a mochila entre as pernas e, claro, toda a gente pensou Onde é que ele vai enfiar o saco? e ele respondeu com gestos. Atirou-o para cima do outro banco vago.

E lá fui eu até Riachos entre uma janela e um saco da tropa. Não cheirava mal, não se meteu comigo, deixou-me escrever...revelou-se um companheiro bastante tolerável, tendo em conta que no dia anterior fui ao pé de 4 sogras e 1 velho.

Nunca mais me calha a miúda gira...

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