A Paixão de Madalena - Capítulo 2

A Paixão de Madalena

Livro I - A Paixão de Madalena

2. Há cidades que exercem sobre os seus habitantes e visitantes uma magia especial como se algo nos fosse familiar mesmo sendo a primeira vez que lá vamos, como se pairasse no ar certa nostalgia ou ainda como se houvesse a comunhão de um sentimento coletivo clara e facilmente identificável. Genebra tem esse sentimento. É a paz. A tranquilidade. Rodeada de montanhas cobertas por mantos brancos de neve, composta, na parte velha, de ruas estreitinhas e típicas, a cidade usufrui, sobretudo, da presença do imenso lago. É como se aquela água límpida, quase sem ondulação, sussurrando nas margens, transmitisse uma paz comum. Hoje em dia, o trânsito já se vai vendo caótico, sobretudo na travessia do lago, mas na década de noventa, quando Kyle Mckenzie aí vivia, o frenesim urbano era mínimo e Genebra podia descrever-se como uma aldeia grande. Estamos nos primeiros dias de outubro de 1994, o frio começa a fazer sentir-se, as nuvens de neve vão cercando as montanhas que, em breve, estarão brancas como véus de noiva. Já sabe bem um casaco de pele ou mesmo de penas. Sendo trágico perder-se uma vida humana, sempre que tal acontece, e aconteça com quem acontecer, mais trágico se torna quando a pessoa que deixará este mundo sabe o que vai passar-se. E Kyle sabe. Há vários anos que luta contra esta doença, fez os testes todos, fez todos os tratamentos, ganhou, perdeu, avançou para a vida e cedeu espaço à morte, mas hoje, neste preciso momento em que Madalena lhe segura a mão e lhe diz, Não partas, não podes partir, falta fazer uma coisa, pelo menos uma, quero ter um filho teu, nosso, tu sabes, Sim, eu sei, mas não posso já cumprir essa promessa, meu amor, acho que o meu tempo se esgotou, não sinto forças para continuar, também eu quis esse fruto do nosso amor, mas não foi possível, acho que os deuses nos invejaram, Kyle sabe que não sobreviverá a este ataque silencioso da doença. Como se houvesse formas diversas de conceção natural, Madalena cerra os dentes, fecha os olhos, leva a mão de Kyle ao seu ventre e deseja um filho dele, um filho do amor perfeito. Ele pressente a intenção, sorri levemente e murmura, Sempre uma sonhadora…

O último ano fora uma tortura. As dores, as perdas de consciência, as consequências devastadoras da quimioterapia. Tinha resistido bem nos últimos sete anos, tinha combatido de todas as formas possíveis, seguiu todos os conselhos e fez as experiências todas, até o xarope de aloé vera, o cato milagreiro, mas o facto é que a missão em África o fragilizara bastante e agora não lhe apetecia mais, não conseguia mais sobreviver. A morte havia vencido pelo cansaço. Não leva arrependimentos, exceto não ter dado a Madalena o filho que ambos desejavam. Com esforço e sofrimento, ainda tentara há um par de meses atrás, mas o seu amor, abençoado de tantas formas, parecia não ter colhido a bênção do Senhor naquela vontade.

Madalena passa-lhe uma mão pela face, vê-o muito fraco, completamente vulnerável e pressente, também ela, que o vai perder. As máquinas à sua volta fazem bips metálicos, mostram gráficos e de quando em vez cospem tiras de papel. O quarto está escurecido e não são permitidas visitas à exceção da mulher de Kyle. Ela beija-lhe as mãos e a face e a testa e repete mecanicamente, como se tivesse desaprendido todas as outras palavras, Meu amor, meu amor, meu amor… Nunca chorou junto a ele. Kyle era a fonte da alegria e da vontade de viver, não poderia, não quereria, trazer sinais de tristeza à sua beira. Foi quando saiu do hospital que Madalena explodiu num choro desesperado e convulso, caminhava sem destino a ver se a dor a perdia por entre o emaranhado das ruas, limpava as lágrimas com as mãos e continuava a chorar e a dar gargalhadas pelo meio do choro à medida que imagens da sua vida em conjunto lhe afloravam à memória. Às vezes, quando queria fazer amor com ela, Kyle brincava com a sua diferença de idades, Princesa, anda cá ao velhote, vamos ver se isto ainda funciona, e viam e acabavam mergulhando em carícias apaixonadas até a princesa e o velhote tombarem suados e exaustos. A própria cidade lhe parecia mais triste, menos amistosa, menos acolhedora. Só mais tarde perceberia, mas a verdade é que Madalena nunca viria a superar a perda de Kyle. Conhecera-o. Entusiasmara-se com ele. Aprendera com ele a ser mulher. Entregara-lhe a vida. Rira com ele. Chorara com ele. E agora ficava-lhe um vazio profundo no peito. Madalena perguntava-se se seria possível, se seria justo, se seria humano, conhecer o homem da sua vida, encontrar o amor dos amores e só poder desfrutá-lo durante sete anos. Poderiam sete anos valer uma vida inteira de paixão e de amor? Não compreendia porque teria de morrer o homem que lhe mostrara a vida, que lha entregara. No último ano, Kyle não se cansou de repetir, Princesa, não te preocupes, vais encontrar um homem melhor do que eu… e mais novo! Não sejas tonto, Kyle, não há dois homens como tu. Tu és como essa cerveja irlandesa que bebes como água, podem fazer outras, mas é na Guiness que está a essência. Ah, princesa, a Guiness! Essas garrafas fazem milagres! Kyle Mckenzie, comporte-se! Riram da partilha cúmplice e ambos souberam que Kyle a havia libertado. E ela percebeu que essa era só mais uma razão para nunca desprender-se dele.

Olhando a cena que agora presenciamos, podemos dizer sem grande risco de imprecisão que lá fora é Genebra e aqui dentro é Belfast. O lago adormecido e calmo exala tranquilidade. Está frio. O manto branco circundante da cidade cresce a cada noite que passa. É manhã, mas ainda muito escuro. Madalena está na cozinha, tem um café forte fumegando em cima da mesa, ao lado, scones que acabou de confecionar e está de frente para o fogão onde rebrilham tiras de bacon frito com ovos estrelados. Espremeu duas laranjas e juntou um pouco de água. Decidiu reviver sozinha todos os rituais que praticava com Kyle. Tem-no gravado na alma e no peito. Quer também incluí-lo nos seus gestos do dia-a-dia. Vai cantarolando "The Whole of the Moon" dos Waterboys e prepara-se para começar a comer. Algo aconteceu, contudo, que não tinha acontecido ainda. O odor perfumado do bacon e dos ovos, o aroma do café, tudo isto que, normalmente, lhe fazia crescer água na boca e comer com satisfação trouxe-lhe, súbito, um vómito. Correu à casa-de-banho e vomitou tudo o que tinha no estômago. Água. E pensou, Mas ainda nem sequer comecei a comer, deve ser a sugestão. E voltou à cozinha. Desta vez nem precisou sentir o cheiro da comida, assim que avistou ao longe os ovos, foi acometida de novos vómitos. Enfiou a cabeça na sanita e expeliu água. Colou os olhos na parede e gritou: Kyle! Pegou na carteira, desceu as escadas numa correria de saltar degraus, saiu para o frio com um braço no ar e a palavra a saltar-lhe dos lábios, Táxi! Táxi! Entrou na farmácia afogueada, com o peito cheio de esperança e medo e antecipação:
- Um teste de gravidez, por favor.
- Que idade tem a menina?
- A suficiente para estar grávida do meu amor.
- De acordo.
- Posso usar a casa-de-banho?
- Claro que sim, respondeu-lhe o farmacêutico perguntando a si mesmo que urgência poderia haver para saber uma jovem se estava grávida ou não. Se não estivesse, problema encerrado. Seria talvez o melhor. Se estivesse, nada poderia fazer agora se não esperar, marcar umas consultas, contar à família, ao pai e continuar a esperar. Pensou isto o farmacêutico porque desconhecia as aflições e as urgências de Madalena, as mesmas que o amável leitor já conhece.

A casa-de-banho era pequena, mas Madalena não precisava de mais. Um lavatório com um espelho por cima e a sanita onde está sentada. Lê apressadamente as instruções e inicia os procedimentos. Dois minutos mais tarde agarra na prova da sua satisfação e sai à rua com o teste de gravidez em punho gritando, pela segunda vez nessa manhã, Táxi! Táxi!
Depressa! Depressa! Repetia ela ao segundo taxista do dia. Entra no hospital com a roupa em desalinho e o peito em sobressalto, atravessa um corredor, sobe dois pisos de elevador, respira fundo, sai para outro corredor, dirige-se à ala de internamentos de oncologia, Deixem-me passar, preciso falar com Kyle Mckenzie, sou a mulher dele, deixem-me  passar. Um enfermeiro segura-a, tenta acalmá-la, puxa-a para uma salinha e diz-lhe, Tenha calma, por favor, tenha calma, precisa ouvir-me. Ela pressente as piores notícias e grita, Ele morreu? O meu Kyle morreu? Não. O senhor Mckenzie não morreu ainda, mas temo que as notícias não sejam animadoras. Como assim? Deixe-me falar com ele. Eu deixo, mas ele não vai poder ouvi-la, há duas noites atrás, pouco depois da senhora sair, o senhor Mckenzie entrou em coma e nada indica que vá recuperar, infelizmente só os aparelhos de suporte de vida o mantêm entre nós. Madalena levanta-se, ignora as palavras e os avisos do enfermeiro, corre para o quarto, ajoelha-se junto à cama de Kyle e fala com ele entre lágrimas e soluços, Acorda, meu amor, acorda, acorda seu irlandês teimoso, vamos ser pais, conseguimos, conseguimos, ouve-me, Kyle, ouve a tua princesa, conseguiste, Kyle, conseguiste, ficará entre nós uma semente de ti, o fruto do nosso amor. Dizia estas palavras como que esperando que a maravilha da notícia o despertasse, como se, pronunciadas as palavras de anunciação, Kyle se libertasse dos tubos e dos fios e das máquinas e lhe respondesse, Sim, princesa, conseguimos, vês, o teu velhote ainda funciona. Ela esperou depois algo mais ténue, um sinal impercetível, um sorriso tímido, um piscar de olhos. Nada. Kyle Mckenzie não voltou a acordar. Nunca saberia, neste mundo, que fora pai. Morreria semanas mais tarde naquele quarto de hospital. Morreria, por ironia, junto à estação do nascimento dos nascimentos, o Natal. Madalena recebeu do seu professor uma última lição. Aprendeu que pode um homem estar morto e vivo ao mesmo tempo. Pode jazer inerte e frio numa cama de hospital e fervilhar de vida no ventre de uma mulher. É preciso ser-se um homem especial para conseguir tal feito. É preciso ser-se uma mulher especial  para aceitar a vida de um tal homem e dedicar-lhe com devoção a alma e todo o amor de que se é capaz.

É por serem especiais que contaremos a sua história. Fazemo-lo já porque maio não vem longe e com ele chegará o fruto do seu amor: Jacob.
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