Crónicas de África - Road Trip Maputo - Vilankulo e Volta.


Crónicas de África - Road Trip Maputo - Vilankulo e Volta.

Vilankulo, 21 de dezembro de 2012

Eram quatro da manhã. Maputo nem parecia a mesma. Uma calma e um silêncio pintados pelo breu da noite que começava a render-se à luz. Nenhum veículo em trânsito. Cruzámos a avenida 24 de Julho como se estivéssemos numa cidade fantasma. Levámos meia hora a abandonar o perímetro da capital. Como prevíramos, nenhum auto-stop. Só começaríamos a ver auto-stops por volta das seis da manhã. Fizemos 740km em 10 horas à ida, em 16 horas à vinda, cera de 1600km, portanto. passámos por cerca de 30 brigadas policiais e só nos mandaram parar uma vez, na viagem de ida, a 17km do destino. Boa tarde. Boa tarde. O livrete, por favor. Aqui tem. Pode seguir, mano.

Muitas vezes corrigi os meus alunos por dizerem, Em Moçambique faz-se assim, Em Moçambique é assim, Em Moçambique funciona assim. E lá atalhava eu dizendo que não podiam referir-se a todo o país pelo conhecimento que tinham da Capital. Maputo é a Capital, mas não é Moçambique. Dizia isto sem conhecimento de causa. Pelo cálculo, pelo bom senso e por algumas leituras. Hoje, ainda não tenho todo o conhecimento de causa, mas sei, pela riqueza que a viagem teve, que Moçambique é um país fantástico, muito para além da sua Capital.

A paisagem é arrebatadora. Começa com grandes planícies, a perder de vista, com o horizonte "limpo", cortado por aquilo a que o Iago chama de "Árvores à Rei Leão". Depois, é todo um imenso palmar, uma mar de verdes luminosos a emoldurar a paisagem. De quando em vez, como em Zavala, ou em Inharrime, o azul turquesa do Índico vem compor o cenário e chega, mesmo, no caso de Inharrime, a beijar a estrada. É um azul intenso e irrepetível. Não é um azul forte. É um azul clarinho e límpido a fugir para o tom de verde-água de uma água de colónia que a minha mãe usava quando eu era criança. E, pelo meio das árvores e da vegetação, são às centenas os povoados construídos em casinhas redondas com telhados de palha (palafita) atada e apertada. E estes povoados, mesmo em pisos térreos, estão impecavelmente varridos e o seu traçado é perfeitamente visível.

Ao longo dos 740km há, sem exagero, pelo menos de vinte em vinte quilómetros, às vezes nem tanto, uma Escola Primária. Mais ou menos a cada cinquenta quilómetros, há uma maternidade e um posto da polícia e, sim, há combustível ao longo do caminho, embora, por vezes, alguns postos estejam avariados.

À exceção das auto-estradas, que são estéreis como consequência do seu próprio conceito, as estradas são centros de vida, espaço de negócios e transações, ponto de encontro, e a Nacional 1, que cruza o país de Sul a Norte, com retas de várias dezenas de quilómetros, algumas a perder de vista, é uma estrada constantemente bordejada de vendedores de tudo o que é vendável. Primeiro a venda da castanha de cajú com os rapazes a assinalarem os seus pontos de venda atando inúmeros sacos de plástico transparentes a uma árvore ou a um fio estendido entre dois pontos. Os sacos emprenham com o vento e fica um espetáculo de atrair atenções. Depois a zona da lenha. As pessoas fazem molhos de lenha, empilham-nos à beira da estrada e ficam à espera que alguém os venha comprar. Pode vir uma pessoa comprar um molho, como pode parar um camião e levar tudo de uma vez. Depois, a zona dos ananases. Grandes, pequenos, verdes, maduros, são pendurados em bancas de venda e vendidos baratos. Depois a zona dos cocos. Um saco com cinquenta cocos custa 200 meticais, mais ou menos 5,4€. Depois a zona das mangas, onde são vendidas ao alguidar (mais ou menos 10kg) ou à lata (mais ou menos 20kg). Se pedirmos para comprar uma manga, encolhem os ombros como se não batêssemos bem da tola e oferecem-na. Quem é que quer uma manga?! Há ainda a zona do carvão e das massarocas, cruas e assadas e há aquela cidade onde para se entrar ou sair, alguém tem de levantar uma cancela e há a zona do piri-piri onde se montam umas estantes em madeira e se expõem as garrafas enfileiradas.

E, além de tudo isto, há as vendas ocasionais. Alguém tem lá em casa qualquer coisa que quer vender e vem para a beira da estrada. Achámos particularmente curioso um jovem com um coelho branco pendurado pelas orelhas, com ele bem erguido no ar, a ver se alguém o queria levar.

Quando paramos para comprar umas mangas, perguntei a como eram, a vendedora apontou para um alguidar e disse, Cinquenta. E depois apontou para uma lata enorme e disse, Cem. Eu apontei para o alguidar e disse, Levo aquelas. Ela vazou-as para um saco, eram seguramente mais de dez quilos de mangas e tinham custado cinquenta meticais (mais ou menos 1,25€). O Iago perguntou-me, Como é que sabias que era 50 por todas? Eu pensava que era por cada uma. E eu ainda hoje penso na pergunta dele. Eu não sabia, calculei. Acho que, com o tempo, nos habituamos às dádivas da Natureza já que tudo o resto é tão caro e difícil.

Quando parámos para comprar ananases, demos com uma simpática e desdentada anciã, apareceu com uns ananases enormes, para aí com mais de dois quilos cada um. Quanto queres? Cinquenta. Ok, dá cá dois. E quando ia para seguir, ela levantou a mão como que a dizer Não vás já e disse:

- Papá, não tens um chocolate?
- Chocolates não tenho, não posso comer, fazem-me mal aos dentes.
- Mas posso eu, já não tenho dentes!

E largámo-nos todos a rir. Fiz-lhe uma contra-proposta:

- Tenho aqui uma Laurentina, queres?
- Quero.

O Iago deu-lhe a garrafa da cerveja para a mão e senhora começou a dançar e a rodopiar sobre si própria, esfuziante de alegria e cantando Obrigado! Obrigado! Obrigado! O interessante é que ela dera mais importância a uma oferta do que ao facto de ter acabado de vender dois ananases. E foi-se afastando do carro e a miudagem foi atrás dela, não tanto por lhe cobiçar a cerveja, mas mais por partilhar a alegria do momento.

À medida que atravessámos localidades mais povoadas como Xai-Xai, Quissico, Lindela, Maxixe, Morrumbene e Massinga, era sempre o mesmo espetáculo de cor e odores frutados e movimento e ruas de passagem transformadas em autênticos mercados com os produtos em bancas e pelo chão numa riqueza e numa demonstração de vida ímpares.

Quando chegámos a Vilankulo estávamos cansados, mas estávamos, também, saciados. Finalmente, ambientes genuínos e livres onde nem tudo está controlado. Quero dizer, onde quase nada está controlado e a vida brota e acontece com a pujança que a carateriza. Finalmente, um pouco de Moçambique fora de Maputo. Finalmente uma viagem à moda antiga, com incidências e peripécias, com paragens e trocas e conhecimentos. Depois conhecemos Vilankulo, que escreverei em breve, e regressámos pelo mesmo caminho mas com parte do percurso feito de noite. Completamente desaconselhado. Carros sem luzes a ultrapassar em contra-mão, atrelados sobrecarregados a partirem o engate com o veículo e a despistarem-se ambos,  pneus que rebentam e eixos da direção que partem por excesso de peso. Carrinhas pequenas que levam tanta gente e mercadoria que parecem almejar o céu, mas que perdem o equilíbrio e tombam para o lado. Uma aventura e um risco.

Viajar é uma experiência única. Viajar em Moçambique é uma experiência única e especial. É conhecer as gentes as terras, as movimentações, a força do labor e a paisagem de cortar a respiração. Tem magia e encanto este país e eles notam-se mais quando se cruzam as terras. E, por falar em cruzar terras, nesta viagem cruzámos o Trópico de Capricórnio que está assinalado com placas e onde fizemos a tradicional fotografia. Só um pormenor entre tantas coisas a registar. Melhor do que isto, só arranjar tempo e cruzar o país todo. Coisinha para 3000km e volta. Que é lá isso?!

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Dados da viagem:
Quilómetros percorridos: mais ou menos 1650.
Horas decorridas: cerca de 26.
Litros de combustível: cerca de 80.
Coca-colas bebidas: cerca de 16
Águas tónicas: 2.
Cervejas bebidas: 1.
Água consumida: mais ou menos 8l.
Frangos comidos: 1.
Mangas compradas: cerca de 20kg.
Ananases comprados:2.
Capulanas compradas: 2.
Canções ouvidas: cerca de 330. O Iago foi à Estrela, em Maputo, e comprou uma "coisa" onde se enfia a pen/flash com música, depois liga-se ao isqueiro do carro, e depois o rádio sintoniza a "coisa" como se fosse uma estação de rádio. Com comando e tudo por 180 meticais.
Auto-stops encontrados: mais ou menos 30.
Auto-stops em que fomos mandados parar: 1.
Paragens para comer: sei lá! umas seis.
Paragens por outras razões fisiológicas: bué!
Conselhos: Faça Você Mesmo!
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jpv

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