Crónicas de África - O Regresso


Crónicas de África - O Regresso

Maputo, 26 de agosto de 2013


De regresso a Moçambique. Uma multiplicidade de sentimentos e emoções cruzam-me a alma e trazem-me o peito no fio da navalha, entre a alegria e o aperto da saudade.

Antes de mais, quero pedir desculpa aos familiares e amigos que não consegui ver nestas férias. O tempo voou. Bastaria um só olá, um abraço, um beijo. Não foi possível porque não quisesse. Só porque não consegui. Dividido entre a família mais chegada e a necessidade de manutenção que um ano de ausência provoca numa casa, acabei não vendo todos. Em breve, será possível rever algumas destas pessoas que estão no meu coração.

Fizemos as viagens partindo de JoBurg. E a razão é simples. Menos de metade do preço. E conseguem-se trajetos de duração muito aceitável. Entre as 11 e as 13 horas de viagem. Ora, isto trazia um problema. Era preciso ligar Maputo a Joburg de carro. Cerca de 500Km. É aqui que entra o Y.R. que me foi apresentado, por quem havia de ser, pelo já aqui retratado M. O Y.R. é um moçambicano muçulmano que vive dos seus diversos, muitos, negócios, sendo o transporte de pessoas só mais um deles. Em viatura confortável, com condução muito segura, o Y.R. surpreende pela fluência do discurso e pelos muitos recursos que apresenta. Uma das coisas que apreciei nele, foi a calma e a tranquilidade com que enfrenta cada dificuldade. Nem a polícia, nem a fronteira chegam a ser problemas. Ele contorna com simpatia cada situação. E, claro, quando para numa qualquer portagem e saúda o/a portageiro/a com a frase "Have a sparkling day", arranca-nos uma gargalhada. Colocou-nos no aeroporto e foi buscar-nos ao aeroporto com assinalável eficácia. Tema de conversa não podia faltar. Y.R. é um benfiquista tão apaixonado quanto eu. Vive o clube, a emoção do jogo, a superstição da roupa a vestir ou da posição dos comandos da TV quando o Benfica joga. Pediu-me para lhe trazer umas camisolas da Loja do Benfica, favor que fiz com toda a satisfação. Por outro lado, é um homem de Fé e leva esse assunto muito a sério, ainda assim, felizmente, fala dele com toda a naturalidade. E assim aprendi imenso sobre o islamismo e esclareci uma série de estereótipos que o tempo foi cristalizando. E quando chegou a minha vez, expliquei alguns aspetos do cristianismo com que o Y.R. estava menos familiarizado. Foi engraçado porque ele tinha todo o cuidado de parar para comermos e descansarmos e a única coisa que, desde o início, disse que tinha de fazer, era parar para fazer as suas orações. E assim foi. Moçambique na sua multiplicidade integradora de diferenças. Sem preconceitos. É um homem de família e um homem de bem. Foi a companhia ideal para ligar Maputo a Joburg.

O regresso surpreendeu-nos. Tínhamos lido e ouvido, ainda em Portugal, que o ambiente por aqui andava tenso. A verdade é que, felizmente para nós, os moçambicanos estão iguais a si próprios. Alegres e acolhedores. Os vizinhos receberam-nos com saudações calorosas, "Bem vindos!", "Correu tudo bem do seu lado?", "A viagem foi boa?", "Ficamos felizes por terem regressado!". Ora, que os vizinhos nos tivessem acolhido bem, foi muito bom, mas o que eu não estava mesmo à espera era de ser reconhecido pelo senhor que vende laranjas no semáforo da 24 de julho com a Amílcar Cabral, ou pela senhora que pesa a fruta no Mica... Rever os nossos primos foi importante e regressar ao local de trabalho e encontrar toda a gente com um ar fresco e bem disposto a tratar-nos como se estivéssemos naquela escola há vinte anos, também foi reconfortante.

E claro... há sempre aquela franqueza e aquela simplicidade deliciosamente desconcertantes. Foi preciso comprar um pequeno eletrodoméstico, um ferro de passar. Havia dois parecidos, quer dizer, iguais, mas com uma diferença de mil meticais (mais ou menos 25€). Chamámos uma funcionária da superfície comercial e perguntámos:
- Estes ferros parecem iguais, mas têm uma diferença de mil meticais, sabe dizer-me porquê?
Ela estranhou a pergunta, normalmente, por aqui, compra-se aquele de que se gosta mais. Uma questão de simpatia, amor à primeira vista, eu sei lá. Nós é que complicamos tudo o que é simples. E vai daí respondeu:
-Ora, servem os dois para passar.
Devemos ter feito um ar estranho, talvez insatisfeito com a resposta, então ela examinou os ferros e rematou o assunto de uma forma que só acho possível acontecer em Moçambique, uma ternura:
-Olhe, este aqui tem mais 100 watts. Sabe que mais? Isto serve é para passar a ferro, acho que 100 watts não valem mil meticais. Leve este. Ainda por cima, o que tem mais watts, gasta mais energia!
E não esteve com meias medidas, além de aconselhar, decidiu, porque a verdade é que agarrou na caixa do mais barato e pô-la nos nossos braços.

Atravessámos a avenida marginal, percorremos as capelinhas do costume, vimos as pessoas do costume e, de repente, a cidade vive de novo em nós. Pela frente, mais um ano de trabalho, numa terra inigualável. Moçambique acolhe-nos e nós deixamo-nos acolher. Regressámos há um par de dias e é como se nunca daqui tivéssemos saído!
jpv

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